domingo, 22 de julho de 2007

AVISO AOS LEITORES DESTE SITE

Com o objetivo de dinamizar as publicações periódicas, achei por bem transferir este site a outro endereço, de fácil acesso. Isto permitirá maiores agilidade e visualização dos textos.
Assim, solicito a gentileza de clicar no link abaixo para ler as novas publicações do ENTRE-TEXTOS:
Obrigado pela compreensão.
(Elson Teixeira Cardoso)

sábado, 21 de julho de 2007

A MORTE DO CARLISMO

Há homens que, de tão poderosos, dão a impressão de serem inabaláveis, até mesmo imortais. Então, surge uma tragédia pessoal e a montanha inabalável estremece; quando não, esfacela-se. Surge uma doença incurável, um mal súbito, e, depois de algum tempo, a morte leva aquele que parecia blindado, que jamais morreria.

A morte do senador Antônio Carlos Magalhães (DEM), que sofreu uma parada cardíaca no dia 20 de julho de 2007, aos 79 anos, é a recente demonstração disso. ACM, como era chamado, constituía-se num empreendimento humano, um patrimônio vivo, tal o poder e influência que exercia na política brasileira. Pois ACM iniciou-se na carreira política na época de estudante, tendo sido presidente do Grêmio do Ginásio da Bahia, e do Diretório Central de Estudantes, da Faculdade de Medicina, onde formou-se.

Em 1954, ACM foi eleito deputado estadual pela conservadora União Democrática Nacional (UDN), ocupando seu primeiro cargo eletivo. Em 1958 e 1962, foi eleito deputado federal, atuando como um dos articuladores do Golpe Militar de 1964. Sob o regime ditatorial que ajudou a instalar-se no país, foi reeleito deputado federal em 1966, desta vez pela não menos conservadora ARENA, sendo nomeado prefeito biônico de Salvador no ano seguinte, ocasião em que construiu a base do carlismo na capital, arregimentando habilmente poder político. Ocupou três mandatos como governador da Bahia, sendo eleito diretamente apenas uma vez. O fato é que foi um governador competente e, no primeiro, iniciado em 1971, soube aproveitar-se do chamado “Milagre Econômico”, levando o Estado a entrar num processo acelerado de industrialização, com a instalação de indústrias no Pólo Petroquímico e realização de obras de grande impacto na capital, o que alavancou o turismo. Depois do primeiro mandato, foi nomeado à presidência das Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletrobrás), retornando ao governo da Bahia em 1979, quando sucedeu um afilhado político e deu continuidade ao trabalho do início da década de 70, contando com o apoio da maioria dos prefeitos do Estado, e quase a totalidade das bancadas de deputados federais e estaduais.
Após a abertura política e anistia, ACM ofereceu seu aparato político ao candidato Tancredo Neves, oferecendo-lhe apoio no Colégio Eleitoral. Isto levou-o a ser nomeado ministro de Estado das Comunicações, em 1985. No ano seguinte, ingressou no recém-criado Partido da Frente Liberal (PFL), que, duas décadas depois, viria a ser Democratas (DEM). Toninho Malvadeza, como ACM era jocosamente chamado, devido à truculência e repressão à oposição, durante o regime militar, ocupava um cargo estratégico no governo de José Sarney, ao mesmo tempo em que ampliava seu poder empresarial na Bahia, justamente no setor de telecomunicações.

A derrota do candidato de ACM ao governo da Bahia, em 1986, foi interpretada como a morte anunciada do carlismo, entretanto, em 1990, ACM foi eleito governador no primeiro turno, assumindo no ano seguinte e licenciando-se três anos depois, para concorrer ao Senado, que presidiu entre 1997 e 2001, numa clara demonstração de que o carlismo fortalecera-se ainda mais. Mas, em 1998, seu filho e herdeiro político, deputado federal Luís Eduardo Magalhães, ex-presidente da Câmara dos Deputados, sofreu um ataque cardíaco e faleceu aos 43 anos. Esta, sim, foi a morte anunciada do carlismo, já que ACM pretendia ver o filho no governo da Bahia e, depois, na Presidência da República.

Em 2001, após o escândalo da violação do painel do Senado, ACM foi obrigado a renunciar ao cargo de senador. Em 2002, foi novamente eleito senador, com a maior votação para o cargo, na história da Bahia. Porém, em 2004, a oposição derrotou seu candidato ao governo de Salvador, como prenúncio de duas grandes derrotas que ocorreriam em 2006. O carlismo perdeu o governo da Bahia, no primeiro turno, para Jacques Wagner (PT), ex-ministro do governo Lula, e uma vaga no Senado para João Durval Carneiro (PDT).
O carlismo agonizante sofreu o último baque com a morte de ACM e, ainda que sua vaga no Senado seja ocupada pelo suplente Antônio Carlos Magalhães Júnior, o filho mais velho e presidente da Rede Bahia, que aglutina as inúmeras empresas da família, é certo que o carlismo cumpriu seu ciclo e será sepultado com seu criador. A morte provou que ACM era mortal, e o carlismo, passageiro.
Mas, em que pesem o conservadorismo, apoio à ditadura militar e truculência de ACM durante sua trajetória política, é preciso reconhecer o dinamismo e capacidade administrativa, demonstrados nos cargos ocupados. A Bahia não seria a mesma sem ACM.

(Fotografia: Senador Antônio Carlos Magalhães)

(Elson Teixeira Cardoso)

O ATRASO DE UMA HOMENAGEM ANTECIPADA

Passei a me interessar pela obra do teatrólogo Mauro Rasi, em 1996, quando foi encenada em Bauru, pela primeira vez, seu maior sucesso de público e crítica: a peça “Pérola”, uma belíssima homenagem à sua mãe, Pérola, àquela altura falecida. Foram poucas apresentações no Teatro Universitário Veritas, da USC, inaugurado na ocasião, e os ingressos esgotaram rapidamente. Fiquei entre os sem-ingressos, não consegui assistir às excelentes atuações de Sérgio Mamberti e Vera Holtz, entre outros, mas tive o privilégio de conseguir o autógrafo do autor, numa edição de “Pérola”, que guardo entre as relíquias de minha parca biblioteca.

Três anos depois, “Pérola” foi novamente encenada em Bauru, no mesmo local, quase simultaneamente a “O Crime do Doutor Alvarenga”, uma “adaptação” ou “recriação” de uma peça escrita por seu pai, Oswaldo Rasi (à época, vivo), que teve a interpretação do incomparável Paulo Autran. É desnecessário dizer que assisti a ambas.

Mas por que recordo-me disso somente agora? Será que deveria ter recordado em 2006, quando completaram-se dez anos da primeira apresentação em Bauru, da peça “Pérola”? Será que deveria ter recordado no dia 27 de fevereiro de 2007, quando teria completado cinqüenta e oito anos? Ou será que deveria ter recordado no dia 22 de abril de 2007, quando completaram-se quatro anos que um câncer no pulmão levou-o à morte?

Recordo-me agora e transgrido a ordem natural de esperar pelo momento certo, aquele que vem acompanhado da data solene, sem o qual parece não haver sentido na homenagem. (O homem fica à espera de ocasiões especiais, quando tem o poder de criá-las.) Recordo-me agora, num dia aleatório, sem música de fundo executada por uma orquestra de câmara, sem chuva de papéis picados, sem pompa, apesar de não deixar de ser um dia festivo.

Recordo-me que Mauro Rasi, o principal teatrólogo bauruense – e um dos principais do Brasil -, cuja obra deveria integrar o projeto pedagógico-cultural das escolas da cidade, passou a infância e parte da juventude num sobrado estreito, com uma piscina no quintal exíguo, na rua Bandeirantes, no Centro, imóvel imortalizado na peça “Pérola”. Na década de 60, teve que sair de Bauru para ter seu talento reconhecido – à época, a miopia cultural já prevalecia – e lutou para consolidar sua carreira, sendo um dos criadores do “gênero besteirol” (comédias hilárias). Ao longo de sua carreira, recebeu inúmeros prêmios importantes, porém, nunca deixou de referir-se à cidade que tanto estimava, principalmente na peça “Pérola”, assistida por mais de 300.000 pessoas, no Brasil e Europa.

Recordo-me que Mauro Rasi, que possuía sensibilidade artística para captar a ironia e humor presentes no cotidiano, foi objeto de teses acadêmicas e escreveu, além de peças, textos para programas da Rede Globo de Televisão e crônicas para jornais de grande circulação. Utilizava uma linguagem direta, bem elaborada e sem pedantismo; confundia aqueles que, à primeira vista, consideravam sua peças superficiais, pois, com a simplicidade e prazer de quem vai à padaria, à feira ou à banca de jornais numa manhã de domingo, tratava de temas complexos, indagações seculares do homem, em obras que permitiam o prazer de refletir a partir de situações corriqueiras. Elementos autobiográficos eram constantes, serviam como críticas a si mesmo, porém, certas situações pareciam ser o reflexo do cotidiano de qualquer família.

Recordo-me que Mauro Rasi está sepultado longe de sua cidade-natal, no Cemitério dos Ingleses, no Rio de Janeiro, cidade que soube valorizar seu talento. Sua obra consiste num legado dramatúrgico e, conhecer esse legado – em qualquer momento, em qualquer data, em qualquer ocasião –, é a melhor homenagem que pode ser realizada ao saudoso autor, que completaria sessenta anos em 2009.

(Nota: Crônica publicada no Jornal da Cidade - de Bauru -, em 19/07/2007.)

(Arte: Ilustração para uma entrevista do teatrólogo Mauro Rasi, site: http://www.maurorasi.com.br/)

(Elson Teixeira Cardoso)

quinta-feira, 19 de julho de 2007

A MORTE CALA FUNDO NO CORAÇÃO

O que dizer para alguém que acabou de perder uma pessoa amada? Meus pêsames! Meus sentimentos! Seja forte! Foi a vontade de Deus! Chegou a hora! Estava sofrendo muito! Agora, está descansando! Estas são algumas frases triviais, que não condensam o que a pessoa necessita ouvir num momento de extremo sofrimento, mas quase sempre são utilizadas.
Às vezes, o melhor é não dizer nada, mas somente abraçar e deixar o abraço falar por si. O silêncio de um abraço apertado pode trazer consigo uma enxurrada de palavras (não-ditas) de consolo. Mas como consolar alguém que acabou de perder uma verdadeira parte de si mesmo, alguém que está incompleto? Nenhum ser humano, por mais que saiba que a morte é inevitável, está preparado para a perda definitiva, a perda vedada pelo túmulo. É imensamente doloroso saber que a pessoa com quem convivia, dividindo quase tudo, numa intimidade sublime, simplesmente foi embora, para nunca mais voltar; simplesmente deixou a existência, para viver somente nas lembranças.
Quando um casal se separa, é como se, um para o outro, tivessem morrido. Todos os momentos vividos juntos são lançados nas lembranças e a sensação de sepultamento será maior, dependendo de como tudo terminou. Um amor que chega ao fim é o mesmo que morrer e permanecer vivo. Mas o renascimento de um novo amor é o mesmo que renascer à vida. Somente quem experimentou essa sensação, sabe o quanto é sublime.
O que dizer para alguém que acabou de perder uma pessoa amada numa tragédia? As mesmas frases triviais? Uma morte trágica traz em si a perplexidade, a indignação, a revolta. E, cada vez mais, acontecem mortes trágicas.
A colisão entre o Boeing da Gol e o jatinho Legacy, no Parque do Xingu, no Mato Grosso, no dia 29 de setembro de 2006, provocou 154 vítimas fatais, todos passageiros do Boeing da Gol, dando início à crise do sistema de transporte aéreo no país, que vem beirando o caos.
Em São Paulo, o desabamento da linha 4 do metrô, no dia 12 de janeiro de 2007, provocou sete mortos num acidente resultante da falta de fiscalização, algo impensável para a maior cidade do país.
No Rio de Janeiro, no dia 7 de fevereiro de 2007, ocorreu o assassinato mais que horrendo do garoto João Hélio Fernandes, arrastado até a morte por cerca de sete quilômetros, vítima de um crime que abalou ainda mais os pilares da segurança pública do Rio de Janeiro, e do país.
Se não bastassem essas tragédias, no dia 17 de julho de 2007, em São Paulo, ocorreu o pior acidente aéreo do país. No Aeroporto Internacional de Congonhas, o Airbus 320, da Companhia Aérea TAM, saiu do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e, ao aterrissar em São Paulo, derrapou na pista, atravessou a Avenida Washington Luiz e colidiu com um galpão da empresa, explodindo e provocando cerca de 186 vítimas fatais confirmadas, podendo haver mais.
Um acidente que ultrapassou os limites da tragédia, provocado pela pista escorregadia, falha mecânica ou imperícia humana, ou tudo junto. Uma catástrofe que fez o Brasil chorar. Que sirva para as autoridades refletirem sobre mudanças imprescindíveis no sistema de transporte aéreo do país, incluindo a retirada de aeroportos de áreas com edifícios e casas no entorno.
Não é fácil lidar com a morte, não existe uma fórmula. Por mais bem preparada que a pessoa esteja, não estará imune ao sofrimento, à sensação de vazio no coração que a perda provoca. E não adiantará dizer que a morte não é um fim em si mesma, mas uma continuidade, um estágio que tem que ser ultrapassado, enfim, é o prosseguimento da vida. Isto, somente o tempo mostrará. Até lá, a dor profunda terá que ser regada com lágrimas, até a ferida cicatrizar, parar de doer.
Talvez não faça diferença, tamanha a dor, mas é possível dizer a todos que perderam o pai, a mãe, o filho, a filha, o irmão, a irmã, o esposo, a esposa, o amigo, que há quem solidarize-se com a perda.
Sofrimento compartilhado é sofrimento que transforma-se em força e determinação.
Aos que sofrem, recebam o consolo de um abraço. Mesmo que seja um abraço a distância.

(Arte: "Guernica", de Pablo Picasso)

(Elson Teixeira Cardoso)

segunda-feira, 9 de julho de 2007

O PERIGO DAS ESCOVAS DE CABELOS

Mal comecei a tomar banho e minha esposa me chamou desesperada. O que teria acontecido? Um incêndio? A explosão de um posto de gasolina? A fuga dos animais do zoológico? Um terremoto? A cidade estava sendo engolida pelos incontáveis buracos que têm pipocado dia após dia, sem que ninguém faça algo a respeito? Um bombardeio atômico? Um ataque alienígena?
Nada disso.
Saí enrolado numa toalha, sem tempo de me enxugar e vi minha esposa andando de um lado para o outro, desnorteada, como se fosse corcunda, os cabelos caídos sobre o rosto, cobrindo a luminosidade de sua beleza. Aproximei-me mais e entendi o que havia acontecido. Uma escova estava enroscada em seus cabelos.
Pode parecer algo sem importância, uma escova enrosca nos cabelos e, simplesmente, é retirada. Mas não. A escova estava tão enroscada, que parecia colada aos fios de cabelos, um imã que atraíra cada fio para não soltar mais, o abraço de um tamanduá.
O que fazer? Ela sugeriu passar creme, porque ficaria fácil de desenrolar os fios da haste da escova. Sob o chuveiro, tentei retirar fio por fio, mas foi inútil. Quanto mais mexia, mais os cabelos ficavam presos à escova, ou a escova aos cabelos. Até arrisquei um pensamento filosófico, mas fui interrompido com seu desespero crescente.
O que fazer? Pensei em cortar as cerdas rente à haste da escova, o que permitiria que os fios deslizassem tranqüilamente, sendo libertados daquele aprisionamento. Pura teoria; não deu certo, porque não era possível cortar rente à haste da escova, além do mais minha esposa se mexia, levantava a cabeça, balançava os braços, atrapalhava a precisão do corte.
Foi quando tive uma idéia brilhante. Cortar a mexa de cabelos que estava enroscada. Rápido e fácil. Mas minha esposa não concordou, achou um absurdo, como poderia permitir que seus cabelos fossem cortados, se restaria um buraco enorme? Não, era melhor ficar com a escova enroscada, lançaria moda de um acessório, no mínimo, insólito. Afinal, de uma maneira geral, a moda é insólita.
Tudo bem, desisti de minha idéia brilhante, mas não descartei a tesoura. Retirei o cabo do suporte plástico que formava a haste e comecei a cortar vagarosamente, milímetro a milímetro, de modo a abrir a haste ao meio. Finalmente, os cabelos estavam soltos da escova, ou a escova estava solta dos cabelos. Para mais desespero de minha esposa, alguns fios tinham sido cortados. Foi inevitável, ou alguns fios perdidos, ou uma chamada ao Corpo de Bombeiros.
A escova estava toda destruída, e pensar que a compráramos há pouco. Então soube que a escova era velha, a nova estava na embalagem. Mas eram iguais. Tínhamos ido a uma loja naquela tarde e, depois de meia hora, minha esposa finalmente escolhera a escova perfeita, igual a que tinha, mesmo tamanho, mesma cor, mesma marca. Difícil saber porquê. Talvez haja um mistério inexplicável, algo que somente as mulheres entendem.
No dia seguinte, para meu desespero, voltamos à loja e, depois de mais meia hora, minha esposa escolheu outra escova, desta vez diferente, menor, cerdas flexíveis, uma escova mais apropriada aos seus cabelos, esclareceu a vendedora. Saímos satisfeitos, aliviados.
Depois disso, nunca mais subestimarei o poder das escovas de cabelos. Devem ser escolhidas padronizadamente, não importa quanto tempo demore, pois há o perigo de rebelarem-se e causarem um motim nos cabelos. Objetos inofensivos? Podem ser mais cortantes que lâminas. E, quando enroscam-se nos cabelos, ou o contrário, somente a tesoura pode resolver o problema.
(Arte: “Nicky Lane, Weymouth”, 1974, de Andy Wharol)
(Elson Teixeira Cardoso)

terça-feira, 3 de julho de 2007

P A L E T A D E P A L A V R A S

EU QUERO MAIS QUE A SUPERFÍCIE!
Uma bolha que explodiu no ar e deixou a solidão fragmentar-se em ínfimos, ínfimos, ínfimos pedacinhos de tinta que não combinavam com aquela imagem redonda e perfeita de brilho. Em câmera lenta... splash! Para todos os lados, em todas as direções, flechas de partículas minúsculas, sob o impacto de um simples alfinete. E lá se foi...
A bolha que voava e acreditava na sua infalibilidade. Que iria para o céu, infinitamente, assim... De repente, ao menor toque, um fim espalhafatoso e agregário, a expulsão da pele de si mesma - a pele que constitui o próprio ser, que cobre o nada e nada protege. O vácuo...
Apenas superfície, a bolha. Assim tão fácil de destruir. Uma pele. Uma camada. Uma superfície sem nada.
(Diana Menasché, escritora, http://www.dianamenasche.blogspot.com/)

segunda-feira, 25 de junho de 2007

P A L E T A D E P A L A V R A S

DEPRESSÃO PÓS-CONTRATO

Casamento, pra que te quero. Um embrulho de presente. Meia dúzia de flores. Convidados, pastéis, convites. Respondez s`il vous plait. Cestos, ornamentos, estrelas e fru-frus. Um embrulho a segurar pelo resto da vida. Um negócio que não dá pra usar e jogar fora (complicado...). Raro e temerário.

Tanta ansiedade e plim! Bateram-se as taças, acabou o champanhe. Olha, tá na hora de limpar a sala, a tenda, a festa, opa!, cacos de vidro, farelos de bolo, nhac. De encarar - enquanto é tempo - isso não vai durar. Vai murcha-ar...

Casamento, casamento, casamento. Ele perdura lá, pendurado na parede, perguntando quando vai virar dois belos documentos de óbito. Hehe. Sede, tédio e inveja. Por ali esquecidos os momentos de sonhos, saudaaades... Só vontade de apagar. A vela. O brinde. A promessa. Um nó, uma aliança sem tamanho ajustado. Bamba no dedo, sobra daqui, falta de lá. Peça que não cai direito, cai na primeira esquina, vai esquecida, roubada...
Mas que às vezes funciona... mistério! O capturado vira mestre e as alianças, algemas de espuma, que ninguém consegue separar. O preso sente o prazer de se deixar cair. O torpor de se deixar levar, livre, sem contornos nem destinos. Num piscar de olhos, a coragem de não ser, em prol de viver a derrota magnânima - enlouquecendo além do ópio, sendo puxado pelos cabelos, arrastando-se pela sedução, até os horripilantes primórdios do delírio...
(Arte: Victor Vasarely)
(Diana Menasché, escritora, http://www.dianamenasche.blogspot.com/)

domingo, 24 de junho de 2007

"ULISSES": A JORNADA ÉPICA DE UM DIA

(ENSAIO)
Quando James Augustine Aloysius Joyce nasceu, em 2 de fevereiro de 1882, no subúrbio de Rathgar, em Dublin, na Irlanda, o mais velho de dez filhos de uma abastada família católica, não houve sinais místicos de que seria um bolchevique das letras, um revolucionário do fazer literário, tornando-se um dos gênios da literatura universal.
James Joyce, como ficou conhecido, foi um dos casos raros de escritores que produzem obras à frente de sua época - não como um profeta, mas um visionário. Escreveu poemas, contos e romances, alcançando o feito de não ser "o-escritor-de-uma-única-obra", mas de várias, todas fundamentais à evolução da literatura.
Seguramente, suas principais obras literárias são: "Dublinenses" (1911), "Retrato do Artista Quando Jovem" (1913), Ulisses" (1923) e "Finnegans Wake" (1939). Em todas, inovou nos campos léxico e semântico, causando um misto de estranheza e sedução aos leitores e críticos de meados do século XX, pouco habituados ao anti-convencionalismo nas artes.
Desde então, "Ulisses" é considerado seu romance mais poético, complexo, denso, enigmático, o anti-romance que subverteu as regras ortodoxas da narrativa, através de um processo descontínuo, numa espécie de captação verbal do fluxo mental. De certa forma, antecipou literariamente o que Freud, seu contemporâneo, viria a realizar na Teoria da Psicanálise. Entretanto, nunca se conheceram.
A vida agitada de James Joyce, com viagens e auto-exílio, contribuiu à criação de personagens visivelmente instáveis psicologicamente. O universo dublinense sempre esteve presente em seus escritos, ainda que tenha passado a maior parte da vida longe de Dublin, e da Irlanda.
Em 1904, James Joyce conheceu Nora Barnacle, uma camareira que não comungava de sua vida cultural, mas, apesar das diferenças, casaram-se, e o dia 16 de junho, marcado por ter sido o dia em que fizeram sexo pela primeira vez, foi imortalizado no romance "Ulisses", uma espécie de repositório de figuras reais, transfiguradas em personagens que vivem à beira da exaustão psíquica.
Em "Ulisses", o enredo intrincado e poético, espécie de "reinvenção" do personagem mítico de "A Ilíada" e "A Odisséia", do poeta cego Homero, possui inúmeros personagens e cabe no cotidiano de um dia: 16 de junho de 1904, precisamente em dezoito horas, na cidade de Dublin, Irlanda. Tudo gira em torno de Stephen Dedalus (recriação de Telêmaco, além de espécie de alter ego de James Joyce; o personagem surgiu primeiramente em "Retrato do Artista Quando Jovem") e o casal Leopold Bloom (recriação de Ulisses) e Molly (recriação de Penélope).
(No poema grego, Ulisses, casado com Penélope, deixa-a e o filho, Telêmaco, lançando-se numa jornada durante dezoito anos. Somente ao retornar é que Penélope deixará de fiar, desfiar e refiar, bordar, desbordar e rebordar sua teia, sem ceder aos apelos dos inúmeros pretendentes à sua mão, depois derrotados por Ulisses e seu filho.)
Leopold Bloom é judeu e trabalha como agenciador de anúncios para jornal, é livre pensador de cultura mediana, mas de infinita admiração pelo que supõe ser cultura, é infeliz no casamento e tem uma filha, Milly (já desperta ao sexo). É discriminado por sua delicadeza e urbanidade de trato, por sua ascendência — ora é irlandês, ora judeu, ora estrangeiro, ora cidadão do mundo, suspeito e segregado. A tristeza recorrente em sua vida, e na da esposa, é o filho varão natimorto, personagem que como rima reaparece na mente de ambos, ausência presente que impediu a felicidade do casal. Molly é aquela que podia ou teria querido casar melhor, é a que amou o esposo e não sabe se deixou de amá-lo, é a que o trai imaginariamente, é a que, no devaneio, recapitula amores, recapitulados também pelo esposo. A contagem do casal não coincide: ela não conta os quase-casos, ele os conta em parte, mas omite, ao que parece, alguns reais casos. Molly é humaníssima — Gea Tellus, a Terra Fecunda, a Terra-Mãe —, fora educada para ser dona-de-casa, mas falha nas tarefas.
No decorrer do dia, Stephen Dedalus e dois colegas, albergados nas ruínas de uma torre à beira-mar, debatem temas essencialmente teológicos e teleológicos. Depois, Stephen dá uma aula de história a garotos e recebe um salário. Caminha por uma praia, ruminando os pensamentos e ''lendo'' a marca de cifras, símbolos e signos nas coisas e seres.
Entra em cena Leopold Bloom, matinal, ''conversando'' com a gata, preparando o desjejum da esposa, antegostando o seu. Nada mais corriqueiro. Sai e perambula por Dublin, a cidade personagem, o espaço geográfico de sua jornada épica, puramente psicológica. Chega à casa de um amigo morto, cujo enterro acompanhará. Na redação do jornal, assiste a parte de um diálogo brandido por uns intelectuais presentes, Stephen, inclusive, mas não se conheciam. Vai, a seguir, almoçar, e peregrina em busca de local adequado. Depois, ruma para uma consulta à biblioteca central, e continua suas andanças pelas ruas, temeroso de voltar cedo para casa. Ao contrário do Ulisses grego, a felicidade conjugal não o espera no lar, mas a insatisfação e o fantasma do filho morto. Detém-se num bar e ouve músicas e árias que o inebriam. Passa por uma taverna, visita um hospital, participa de uma comemoração improvisada entre médicos, estudantes e visitantes, inclusive, Stephen, impressionando-se pelo verbo deste, vendo-o endinheirado e quase bêbado, o que o preocupa. O sentimento paterno aflora, numa clara indicação da amizade que está prestes a iniciar-se. Alguns desse grupo resolvem ir a um bordel, ele e Stephen vão juntos. O pai, frustrado pela perda do filho; o filho, frustrado pela sua condição, buscando seu fim, ou um pai de fato.
Bloom e Stephen iniciam um relacionamento interafetivo, que, adiante, prossegue na casa de Bloom, madrugada adentro. Numa interpenetração psíquica, as falhas de cada um juntam-se no convívio de algumas horas do dia, até que o novo amigo chega a dividir o leito interconjugal do casal.
Ao final, Molly, antes de redormir, recapitula o dia e parte de sua vida, num fluxo psíquico, entre lúcida e ilúcida, num derramamento monologal que constitui o clímax do romance.
A densidade de "Ulisses" decorre da jornada psicológica dos personagens, num cotidiano aparentemente normal, descobrindo-se à medida em que interagem uns com os outros, no palco da cidade de Dublin. Literatura e drama são fundidos, chegando ao ponto de um longo trecho do romance ser escrito à maneira de uma peça teatral, rompendo os limites estéticos impostos, numa ânsia desenfreada dos personagens, em busca da comunicação como atenuante ao universo solitário, em que pessoas são cercadas de pessoas, porém, sem se conhecerem. Notavelmente atual, numa época em que a comunicação direta é substituída pela comunicação virtual, e as pessoas continuam a viver à beira da exaustão psíquica.
Mas, James Joyce não usufruiu em vida do sucesso descomunal de seus escritos, principalmente "Ulisses" e a jornada épica de um dia. A vida desregrada, a bebida - bem ao sabor dos irlandeses -, a angústia de viver numa época que não o compreendia, levou-o a morrer em Zurique, Suíça, relativamente jovem e pobre, deixando um legado imprescindível à compreensão da literatura.
(Leia, abaixo, resumo sobre o romance "Ulisses", de James Joyce)
(Elson Teixeira Cardoso)

RESUMO SOBRE O ROMANCE "ULISSES", DE JAMES JOYCE

(LIVRO DE CABECEIRA)
Dublin, Irlanda. O enredo intrincado e poético, espécie de "reinvenção" do personagem mítico de "A Ilíada" e "A Odisséia", do poeta cego Homero, possui inúmeros personagens e cabe no cotidiano de um dia: 16 de junho de 1904, precisamente em dezoito horas. Tudo gira em torno de Stephen Dedalus (Telêmaco) e o casal Leopold Bloom (Ulisses) e Molly (Penélope).

(No poema grego, Ulisses, casado com Penélope, deixa-a e o filho, Telêmaco, lançando-se numa jornada durante dezoito anos. Somente ao retornar é que Penélope deixará de fiar, desfiar e refiar, bordar, desbordar e rebordar sua teia, sem ceder aos apelos dos inúmeros pretendentes à sua mão, depois derrotados por Ulisses e seu filho.)

Leopold Bloom é judeu e trabalha como agenciador de anúncios para jornal, é livre pensador de cultura mediana, mas de infinita admiração pelo que supõe ser cultura, é infeliz no casamento e tem uma filha, Milly (já desperta ao sexo). É discriminado por sua delicadeza e urbanidade de trato, por sua ascendência — ora é irlandês, ora judeu, ora estrangeiro, ora cidadão do mundo, suspeito e segregado. A tristeza recorrente em sua vida, e na da esposa, é o filho varão natimorto, personagem que como rima reaparece na mente de ambos, ausência presente que impediu a felicidade do casal.

Molly é aquela que podia ou teria querido casar melhor, é a que amou o esposo e não sabe se deixou de amá-lo, é a que o trai imaginariamente, é a que, no devaneio, recapitula amores, recapitulados também pelo esposo. A contagem do casal não coincide: ela não conta os quase-casos, ele os conta em parte, mas omite, ao que parece, alguns reais casos. Molly é humaníssima — Gea Tellus, a Terra Fecunda, a Terra-Mãe —, fora educada para ser dona-de-casa, mas falha nas tarefas.

No decorrer do dia, Stephen Dedalus e dois colegas, albergados nas ruínas de uma torre à beira-mar, debatem temas essencialmente teológicos e teleológicos. Depois, Stephen dá uma aula de história a garotos e recebe um salário. Caminha por uma praia, ruminando os pensamentos e ''lendo'' a marca de cifras, símbolos e signos nas coisas e seres. Entra em cena Bloom, matinal, ''conversando'' com a gata, preparando o desjejum da esposa, antegostando o seu. Sai e perambula por Dublin, a cidade personagem. Chega à casa de um amigo morto, cujo enterro acompanhará. Na redação do jornal, assiste a parte de um diálogo brandido por uns intelectuais presentes, Stephen, inclusive, mas não se conheciam. Vai, a seguir, almoçar, e peregrina em busca de local adequado. Depois, ruma para uma consulta à biblioteca central, e continua suas andanças pelas ruas, temeroso de voltar cedo para casa. Detém-se num bar e ouve músicas e árias que o inebriam. Passa por uma taverna, visita um hospital, participa de uma comemoração improvisada entre médicos, estudantes e visitantes, inclusive, Stephen, impressionando-se pelo verbo deste, vendo-o endinheirado e quase bêbado, o que o preocupa. Iniciam um relacionamento interafetivo, em que todas as falhas de cada um, se juntam no convívio de algumas horas do dia, até que o novo amigo chega a dividir o leito interconjugal do casal. Ao final, Molly, antes de redormir, recapitula o dia e parte de sua vida, num fluxo psíquico, entre lúcida e ilúcida, num derramamento monologal que constitui o clímax do romance.

(Fotografia: James Joyce, autor de "Ulisses", em 1928, de Berenice Abbott)
(Elson Teixeira Cardoso)

A PRIMEIRA IMPRESSÃO É FUGAZ

Seria um passeio comum de final de domingo, enfadonho tanto pelo horário quanto pelo local, cansativo no entardecer de um dia que arrastava-se para dar lugar à noite. Passeio familiar, preparação para o crepúsculo de um domingo inerte, destelhado. Chegamos a um lugar inóspito, pouco habitado. Ouvira falar sobre aquele lugar e o imaginava diferente: verdejante, oriental, circundado de lanternas japonesas, lagos de carpas, um lugar agradável aos olhos. Afinal, era um recanto de propriedade de japoneses, família de imigrantes que chegou ao país em 1908. Mas não. O local estava semiabandonado, poucas pessoas transitavam, caçando contentamento entre as árvores de galhos secos, árvores ralas de folhas. A terra apegava-se aos sapatos, como se quisesse fugir dali, do desterro, para encher outras paragens. Não havia nenhum inseto, por menor que fosse. Era como se tivessem fugido, retirantes, esperançosos de um lugar melhor para habitarem. A natureza estava morta; não num quadro, na realidade. Faltava ar, brilho, alegria. Triste maneira de terminar um domingo, este dia que é gordo, afável, mas que no anoitecer lembra fumaça vulcânica.

Senti vontade de ir embora, mas todos estavam animados em permanecer, carentes de natureza, não sabiam distinguir um ambiente saudável, rejuvenescedor, de um desértico. Não tinham experiência, acostumados com a poluição da cidade. Uma moita de fuligem tomava a forma de uma vegetação anã, bonsai cuidado com a meticulosidade de samurais da jardinagem. Queria sair correndo, ir em busca da tranqüïlidade da agitação da rodovia, onde carros voavam frenéticos, entre buzinas e faróis altos, como se guiassem navios que corriam o risco de naufragar no oceano de asfalto. Ao longe, luzes amareladas da cidade. O tempo passava e queriam continuar naquelas ruínas, explorando cada canto do que outrora fora um jardim oriental, estádio do sossego.

Contrariado, tentei imaginar que não estava ali, tentei dormir, mas a insônia me açoitou. Tivera uma péssima impressão, não conseguiria enxergar nada de inovador, nada que remetesse ao passado glorioso do recanto. O que deveria ser prazer, era agonia. Antes tivesse ficado em casa; agora, não estaria me afogando no tédio, não estaria prestes a desmaiar. Fomos a um bar, a única opção, e, como temia, nos sentamos, seguindo um ritual que indicava que ficaríamos horas estáticos, apreciando o que mostrava-se desagradável, enchendo os poros de angústia.

Minha esposa e meu filho afetivo resolveram cantar. Num piscar de olhos, estavam com microfones, cantando no videokê, enquanto um japonês com o pé quebrado manuseava o equipamento. Fiquei surpreso. Instantaneamente, a cortina espessa do bar, cortiça que impedia de enxergar a diversão, foi rasgada, e o som da música inundou o espaço, transbordou em meus ouvidos, foi ouvido nas matas, morros, chácaras, sítios, fazendas, cidades. Um som preciso que segurou a terra, penetrou-a, fez amor com ela, fecundou-a e proporcionou que as raízes de dezenas, centenas, milhares de arbustos, plantas e árvores irrompessem e substituíssem a vegetação calva, desmotivada. Pessoas cantavam em coro, dançavam, giravam como girassóis, aquecendo o local. Havia felicidade.

Como pude me esquecer da vocação de minha esposa? A música a acompanhava, era seu deleite. Sua voz quebrou o encanto dos escombros e o recanto fez jus ao nome. Pessoas chegavam de vários lugares, vinham sem saber como, içadas pela voz sublime, canto de Sereia, e resplandeciam com o barulho da satisfação.

Poucos sabem, mas basta conversar, ouvir a voz de outra pessoa, mesmo desconhecida, para sentir-se bem. O barulho afugenta a tristeza, a preocupação. Por isso, há quem durma com a TV ligada, o som embala o sono, proporciona a sensação de não estar sozinho, o som acompanha, é amigo. Os personagens dos filmes passam a ser amigos: cawboys, policiais, cavaleiros da idade média, nativos, viajantes estelares, todos povoam a realidade da semiconsciência, até que o sono dá seu beijo, e tudo passa a ser sonho. O sono é um ósculo profundo.

Caminhei alguns passos e espantei-me, porque lá fora tudo estava cheio de vida. Não queria ir embora, mas sorver o embevecimento proporcionado. Tive certeza que a primeira impressão não é a que fica. A primeira impressão é fugaz, desfaz-se num estalar de dedos, desaparece como se nunca tivesse existido.

Somos apresentados a alguém e, ora sentimos simpatia, ora sentimos antipatia. Por quê? A primeira impressão, quase sempre enganosa, nos leva a crer que estamos certos. No auge da arrogância, julgamos o outro sem conhecê-lo, sem saber o que, de fato, pensa. A primeira impressão é um descuido; erramos, porque estamos armados, preparados para enxergar e sentir o que é conveniente ao momento. A primeira impressão é um tormento.

Dei uma gargalhada e não conseguia parar de rir. Minha esposa, que suara de tanto cantar, perguntou se estava bem. Disse que sim. Quis saber porque ria tanto. Respondi que tudo estava diferente, como se fosse uma peça, como se estivéssemos interagindo com o espetáculo. De que está falando? Só porque cantamos? Não mudou nada. Como, não? Veja, a vegetação, as luzes, até as libélulas voltaram. Ela sorriu com um sorriso que foi um libelo à minha atitude. Saímos, fomos embora, mas antes vi um açude na escuridão espirrar água.

Realmente, nada mudara, porque tudo já existia, eu é quem não percebera. Não é possível perceber as maravilhas quando se está na margem da contrariedade, com uma venda no coração.

A primeira impressão é fugaz. A segunda impressão é audaz.

(Arte: "A Margem", de Matisse)
(Elson Teixeira Cardoso)

RESUMO SOBRE O ROMANCE "OS IRMÃOS KARAMAZOV", DE DOSTOIÉVSKI

(LIVRO DE CABECEIRA)
Rússia, século XIX. Um palco de intensos debates e conflitos sociais. O niilismo e o ateísmo são os principais elementos responsáveis pela degeneração familiar dos Karamazov, culminando na tragédia de um parricídio. O crime ocorrera há trinta anos. A vítima do crime, Fiódor Pávlovitch Karamazov, conhecido como "fazendeiro", apesar de mal freqüentar a propriedade. Um burguês mau, devasso, egoísta e pobre de espírito, que fora casado duas vezes e tivera três filhos: Dmítri Fiódorovich Karamazov, da primeira esposa, e Ivã Karamazov e Alieksiéi Karamazov, da segunda. Além da suspeita de um quarto filho, Smierdiákov, um criado imbecil que sofria de epilepsia, mas que não era tão imbecil, já que conhecia o esconderijo na casa, onde o velho Karamazov guardava o dinheiro.

Alieksiéi Karamazov, o filho mais jovem, deixou em dado momento o noviciado nas atividades monásticas, aconselhado por seu mestre espiritual, Zósima, para "voltar ao mundo" e, depois, decidir que caminho seguiria. Jovem, equilibrado e justo, agiu como o fiel da balança da família, apaziguando os ânimos e animando os irmãos, que viviam à beira da autodestruição. Seu irmão, Ivã Karamazov, era o mais viajado e inteligente, o niilista que exercia influência controladora sobre as pessoas, especialmente sobre o criado Smierdiákov. Irônico, corrosivo, era um debatedor de problemas sociais e religião, o autor da célebre frase: "(...) Se Deus não existe, então tudo é permitido (...)". Um imoral que tinha seus mistérios e vivia às expensas do pai, sem manter bom relacionamento com ele. Por sua vez, Dmitri Fiódorovich Karamazov, ou apenas Mítia, o meio-irmão, é instável, confuso, ora pende à bondade, ora à maldade. Perdulário, é o principal suspeito da morte do pai, justamente por disputar com ele o amor de uma mulher, além de também passar por problemas financeiros. É acusado, preso e julgado por um júri popular, que o considera culpado pelo crime de morte premeditada para roubar. Sabidamente, o culpaldo era Ivã, que tivera a idéia e instigara Smierdiákov a pô-la em prática, mas Smierdiákov estava morto e tudo conspirava contra Mítia.
Cobiça, exploração, deslealdade e mentira, são outros temas do enredo desse romance monumental, onde a intensa carga psicológica constitui não apenas o retrato de uma época conflitante, mas o retrato de várias épocas. Um romance atemporal, onde atos de maldade ecoam junto a atos de bondade.
Ao final, num discurso num velório, Alieksiéi Karamazov, o quase-monge diz: "(...) não temais a vida! Ela é tão bela quando se praticam o bem e a verdade! (...)"

(Arte: Imagem de Fiódor Dostoievski, em 1872, autor de "Os Irmãos Karamazov")

(Elson Teixeira Cardoso)

quarta-feira, 20 de junho de 2007

SENSAÇÕES

(PARA LARISSA, AMOR SINCERO)

(CONTOS ENCONTROS ENCANTOS)

Abrace uma árvore e você se tornará ela; deite na grama e feche os olhos e se tornará uma formiga; se você ficar olhando por bastante tempo para as nuvens, verá nelas histórias fascinantes. Mas se você não acredita em nada disso, pelo menos ao menos uma vez na vida:
- Abrace uma árvore.
- Deite na grama.
- Olhe as nuvens.
E curta cada momento dessa experiência.
(Fotografia: Litoral Paulista, de Guilherme Clérigo de Santo)
(Guilherme Clérigo de Santo, www.infonewgen.blogspot.com)

RESUMO SOBRE O ROMANCE "MEMÓRIA DE MINHAS PUTAS TRISTES", DE GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ

(LIVRO DE CABECEIRA)
A época? Início do século XX. O lugar? Alguma cidade da Colômbia. Situação política? Ditadores alternam-se no poder. O protagonista? Um ancião, homem solitário, solteiro, telegrafista aposentado e jornalista atuante, escritor eventual de críticas musicais e cronista semanal do jornal em que trabalha há décadas. O improvável? Ao completar noventa anos, decide dar um presente a si mesmo: uma noite de amor com uma virgem. Durante sua vida, habituara-se à solidão e ao sexo com prostitutas. Nunca amara, o relacionamento mais longo, puramente sexual, fora com uma empregada que, no auge da decrepitude, ainda limpava sua casa. Pois este homem, conhecido como sábio, professor, há décadas fora noivo de uma mulher bem mais jovem, que fugiu com outro, no dia do casamento. Em dado momento, ele diz que o sexo o impedira de amar. Resolvera escrever um livro sobre as centenas de prostitutas com quem fizera sexo. Escreveria "Memória de Minhas Putas Tristes". Decidido, mantém contato com a cafetina mais famosa de sua época e encomenda uma virgem. Teria uma menina de apenas catorze anos. Dirige-se ao bordel, local disfarçado de armazém, numa área da cidade sem o brilho do passado. Mas não aconteceu nada naquela noite. Não quis acordar a menina, que dormia profundamente. Na noite seguinte, foi a mesma coisa. Na terceira noite, também.
Um crime. Um banqueiro famoso é misteriosamente assassinado e ele ajuda a cafetina a vestir o morto. O bordel é fechado. A versão oficial é que o homem fora morto por membros do Partido Liberal. Ele perde o contato com a cafetina e a menina. Procura a menina pela cidade, sem encontrá-la. Desespera-se. Algum tempo depois, a cafetina ressurge e encontra a menina. Ele retorna ao bordel, porém, ao vê-la mudada, crescida, uma prostituta, assusta-se, quebra o quarto. Acalma-se e visita-a frequentemente, decorando o quarto à sua maneira, dando-lhe presentes, sem jamais fazerem sexo. Amava a menina. A menina o amava.
O tempo passou e quis comprar o bordel, a casa, o armazém, o pomar, mas a cafetina preferiu fazer um acordo: o primeiro que morresse deixaria tudo para o outro. Ou melhor, para a menina. Concordou. Ele estava feliz, porque, velho, estava condenado a morrer amando, em qualquer dia depois dos cem anos.

(Fotografia: O prêmio Nobel de Literatura, Gabriel García Márquez)

(Elson Teixeira Cardoso)

terça-feira, 19 de junho de 2007

P A L E T A D E P A L A V R A S

CONFUSION AND LONELYNESS

Para onde eu vou? Para onde eu vou? Para onde eu vou? Pensei que eu ia para lá. Espelho. Pensei que eu vinha para cá. Miragem. Acordei, os sonhos persistiram. Voltei. Dei de cara com a parede. De vidro. Recebi um balde de tinta. Encharcada, fui pro brejo.
Não consegui fazer nada e só perdi meu tempo buscando, buscando, buscando algo que não será encontrado tão cedo. Paciência. Quem falou em paciência? Eu falei em desespero! Em não ter mais opção e ter que esperar, esperar, esperar, enquanto a carne é crua. Por que não ligar a televisão? Porque Vasarely é mais interessante. Por que não ouvir o rádio? Porque não tem IMAGEM. Por que não a teia de seda? Porque nem só de solidão vive o homem.
O descontrole total e a perdição. Caminhos e resquícios. Labirintos intransitáveis. Limites. Suspenses. A dor de querer ir e pó. Nada. Puft! Sumiu. Estar na ilusão e pretender alguma arte. Alguma receita. Alguma sabedoria. É só tomar doril... e some tudo entre os reflexos...

(Arte: Vasarely)
(Diana Menasché, escritora, www.dianamenasche.blogspot.com)

segunda-feira, 18 de junho de 2007

A CRÔNICA QUE NUNCA ESCREVI

(CONTOS ENCONTROS ENCANTOS)

A madrugada já havia invadido a noite, talvez num estupro. Eu me acomodava na mesma velha cadeira marrom dos últimos anos, solitário como a Lua. Um cigarro numa das mãos, noutra o copo servido do velho uísque com gelo, tirado da garrafa vermelha. No terceiro andar, meu refúgio taciturno. Repouso noites a fio, tentando não encontrar os mesmos rostos medíocres e hipócritas que perambulam às ruas imundas, acompanhados de falsa modéstia e cinismo. Apesar da pintura desgastada, é um apartamento razoável, o suficiente.
A velha máquina de escrever na mesa, o carro e as teclas desgastados, vez ou outra enrosca no j ou m; não vou aderir a esta tecnologia imperialista. Sei que dizem ser ignorância, falam da globalização, me chamam de casmurro, que se danem todos.
Ao fundo, na parede também velha, a janela permite a vista da avenida, sempre movimentada e mal pavimentada. Nas manhãs, é por ali que o sol invade. A correria diária se prolonga às tardes como diarréia, pernas mazeladas percorrendo caminhos esburacados. As noites se repetem em amiúdes desgraças.
Às vezes me é possível observar prostitutas e transexuais quase desnudos, talvez perfumados com algum sabonete barato, condensado a cheiro de escarro e esperma. Logo se confundem com marginais, vendedores ambulantes e tiras fardados ou à paisana correndo atrás de cheiradores de cola e de crack, “cobrando pedágio”.
Logo olhando pela indiscreta janela, lembro do mestre do suspense, envolto num grito abafado e silencioso, misturado ao hálito quente na voz rouca que eu tanto..., perdão, os lábios enormes e carnudos que mordiam meu corpo. Sem que se esforce para perceber, tudo ao redor é carregado de passado. Talvez também eu o seja, se tanto, basta olhar os cabelos grisalhos ou as rugas que cercam os olhos deformando o rosto.
As mãos firmes, apesar do pesar dos tempos, nem apanharam o papel quando vozes alteradas e tensas se acusam. Levantei da cadeira, tranqüilo, em direção à janela. Dois homens discutindo e se apontando. A cena, ímpar; dois carros, vidro macetado no chão e lataria afundada. Questionavam o de sempre.
Alguém de fora aproximou, tentou dar razão a um, ao outro, nada. Por fim, a situação parecia controlada, perdi o interesse no caso. Voltei à velha cadeira, a fim de escrever a crônica do dia. Não tinha o que escrever; o gelo quase derretido, o uísque quase todo bebido e o cigarro já apagado; eu estava decadente. Era necessário me recompor, acender outro cigarro, servir mais bebida, se é que restara, e acrescentar gelo.
Novamente fui ao pequeno bar no canto direito da sala, quase de frente à janela, e me servi. Não precisava escolher, o mesmo velho uísque da garrafa vermelha parecia ser a única ali, ainda que existissem outras. Disposto a beber até o último gole, fui esvaziando a garrafa. Ainda se podia ouvir as discussões, mas espera, não me interessava olhar novamente. Caso acontecesse, acabaria o uísque e o cigarro apagaria, e eu teria que levantar e fazer tudo novamente.
Passei despercebido pela janela. Sentei em frente à máquina e dei uma tragada. Peguei a folha ainda branca e, antes de colocá-la na máquina, um gole. Sem ter o que escrever percebi a fumaça que subia reta saindo do cigarro e logo acima se perdia no ar, tanto a da minha boca quanto a do cigarro. O uísque me pareceu mais interessante. Outra tragada, seguida de outro gole. Enquanto marcava a margem, prosseguia a discussão que da avenida subia reto à janela do meu apartamento e, em seu interior, se perdia ecoando pelos cantos da sala.
Levantei da cadeira novamente, domado pela curiosidade. Fui à janela observar os ares impuros da madrugada, sem ver a confusão, insistindo em continuar. Olhei o céu, escuro, algumas estrelas mantinham um brilho fosco. Logo se percebia uma madrugada tímida e solitária. Ventava pouco, a temperatura quase agradável e ali, um tanto ébrio, a solidão se fazia minha companheira.
Voltei da janela, talvez aliviado. Cachimbo estava no mesmo lugar de sempre, ao pé oposto da mesa onde eu sentara, deitado sobre o tapete vermelho. O que posso falar de tal bichano sossegado? Quase não dá trabalho! Basta colocar comida duas vezes ao dia e lhe fazer um punhado de carinho no final da tarde. Nunca é mal agradecido, nem esconde minhas revistas e jornais. Não se importa com o canal de televisão ou com a estação de rádio. Ouve qualquer tipo de música e não faz comentários durante ou no intervalo dos filmes. Por esse motivo me é mais agradável a companhia de um gato, e não a dela.
Ela. Mesmo que não quisesse falar sobre, seria impossível não percebê-la entre os cômodos. Pra tanto, basta olhar o quadro no corredor, um exagero! Pudera, com tanta beleza, logo quis modificar a decoração, mulher tempestiva! Seu perfume invadia a casa logo que entrava pela porta ou saía do banho, com a pele rosada e os cabelos molhados se deixando escorrer pelo rosto.

Agora resta o mofo nas paredes do quarto e um gosto azedo na cozinha. Mas não posso viver de saudades, e tenho que escrever a crônica para o jornal. Pior! Tenho que levantar às seis da manhã. Com tantos compromissos, não resisti a outro gole e tragada. Tento me concentrar e escrever algo, pudera, ouço sirene! A discussão permanecia. Talvez um tiro, dois, a situação parecia piorar. Agora vozes que, talvez nítidas, anunciavam voz de prisão.
- Mãos na cabeça!
Lamentável o português errado e vulgar que se podia ouvir. Ignorância pura ou era um polvo defeituoso. Outro tiro, que silenciou e esvaziou o local. Não tardou para que a sirene voltasse novamente. Olhei para Cachimbo, que me re-olhava intrigado. Não muito, pois baixou a cabeça e voltou a dormir. Continuei a olhar a máquina. O papel, ainda branco, já não suportava mais ficar preso e contorcido naquele carro de metal. Nem ao menos a data, o título, a idéia. Eu estava evasivo.
A sirene permanecia, a discussão baixara o tom, era possível ouvir algum vizinho mais desesperado e mula manca berrar silêncio, ou trancar as janelas. Após anos morando neste cortiço, confesso estar acostumado a tais cenas. E pensar que, com tantas coisas, nada em mente para transformá-la num texto. Talvez medíocre, como os escritos das noites anteriores, mas a inspiração não me vinha.
Sei que o pessoal da redação anda comentando, um zunzunzum dizendo que escritor e jornalista velho nem sempre é como uísque, mas não estou a ponto de me preocupar com tal posição. Apenas estou intrigado com a qualidade dos textos que deixaram a desejar nos últimos dias. E falando em uísque, olhei para o copo, vazio. Se cada vez que iniciasse o texto tivesse que interromper para buscar algo, jamais a crônica seria escrita. Logo voltei com a garrafa e uma porção de amendoim torrado. Coloquei-os ao lado do maço de cigarros e, enfim, estava decidido a iniciar a crônica.
O dedo já pronto a disparar a letra f e, um ronco de motor, gritos abafados e um automóvel apressado com os pneus gritantes me furtaram. Novamente olhei para Cachimbo, que dormia um sono leve. Com certeza não estava preocupado com as crônicas do dia seguinte, que seriam publicadas no seguinte ao seguinte. Já o uísque não surtia efeito, o cigarro apagava-se entre fumaça e esquecimento. Restara o quadro na parede, bobagem, restara a janela, silenciada.
Painéis acesos, poucas luzes de néon, uma ou duas almas vagando pela calçada, se arrastando embriagadas e sem destino, e um táxi amarelo que rapidamente virara à esquerda. Com certeza ia em direção ao Bexiga. Chega! Atingi o limite da mediocridade! Além de não escrever, tentava adivinhar o percurso dos táxis e ambulâncias que rapidamente cruzavam a avenida.
Ao longe, a banca de revistas era visível, fechada. Somente às cinco da manhã abriria. Quantas tantas vezes eu ficava da janela a olhando andar dengosa, comprando revista de moda, querendo ser elegante para que pudéssemos jantar fora.
Ainda restara algum tempo, umas quatro horas. O suficiente para um bom cochilo. E por falar em banca de jornal, me lembrei da crônica, que não estava pronta. Logo viriam à minha porta, lá pela seis horas.
Talvez como Gregor Samsa, eu me transformasse num inseto e não conseguisse levantar da cama. Não precisaria abrir a porta e, não que a crônica não estivesse pronta, porém ficaria impossibilitado de entregá-la. Com certeza iriam embora e jamais voltariam. Ou voltariam mais tarde ou no dia seguinte, e logo desistiriam. Olhei para Cachimbo, que novamente me olhara. Não sei se pelo excesso de uísque, Cachimbo balançou a cabeça negativamente e voltou a dormir.

Já aceitava e talvez devesse agradecer, ela não mais retornaria. Estava decidida em sua última carta, mulher geniosa. Talvez pela diferença de idades, ela ainda uma jovem com a vida pela frente; eu, um velho beberrão e mal humorado que tentava ensinar-lhe os truques do mundo. Ninguém sabe os truques do mundo.
Uma das mãos na quina da janela, a outra segurando o queixo, posição que não me inspirara nunca, apenas uma falsa alusão aos bustos de praça. Num instante minha atenção fora roubada. Olhei, em princípio assustado, logo tentei me recompor. Olhei novamente. Não poderia ser possível, diante dos meus olhos daquela maneira. Alguém também deve estar vendo, me perguntei comedido. Caso contrário, seria necessário contar. Foi num estalar que me veio a idéia. Olhei as janelas do prédio, nenhum mula manca olhando à avenida. Corri à mesa, sentei, um gole antes de escrever, para estar preparado.
Espaço, espaço... espaço. Palavras, pá-lavras e pála-vras. Algumas ficaram por aí, vagando alcoólatras. Ainda faltava o título, faltava mais, eu precisava descrever. Outro gole. Já não restara tempo para acender outro cigarro, o texto parecia interessante e ébrio, apesar de absurdo. Levantei, corri à janela e olhei. A inspiração vinha à tona. Voltei à cadeira, junto à mesa, e mais pá-lavras.
As mãos escreviam como se tivessem vontade própria. Fixei os olhos por instantes, as imagens invadiam minha retina com vibração, as luzes eram reluzentes, nem ao menos um piscar. Ponto, parágrafo.
Nem percebi se Cachimbo ainda dormia; com certez,a sim. Como um pintor observando sua inspiração e a descrevendo, não com tintas, com letras, todas vivas e, logo aconteceria o último ponto, o Final.
Mas eu não encontrava o triunfante desfecho. Não encontrava realidade suficiente que desse credibilidade aos escritos. Era necessário terminar a crônica, mas como? Li, reli, e nada! Voltei à janela, esta não me desapontaria, salvadora janela, e... e... já não estava mais lá. Desabei!
Alguns instantes não me foram creditados. Como? Onde? Por quê? ??? Havia desaparecido! Como, se há instantes...??? Restara voltar à mesa e terminar de contar... mas o quê contaria? Jamais diriam ser verdade, tal absurda história. Pensei em descer e procurar melhor, talvez não conseguisse ver da janela. Talvez tivesse afastado, poderia estar por ali, nada adiantaria. Voltei à máquina, retirei a folha, peguei o texto com uma das mãos e o esmaguei. Logo em seguida caminhei em direção à janela. Ouvi uma voz ao fundo, que dizia para que não fizesse aquilo, mas eu estava decidido!
- Alguém há de acreditar, não faça isso!
- Cala a boca, voz maldita! Ela nunca mais vai voltar!
Já estava decidido. Olhei para a janela, o silêncio, passos pela calçada, a banca de jornal fechada, outro táxi amarelo, que desta vez virou à direita, tudo como sempre, e faltava algo, que há pouco eu vira e desaparecera. Não importava mais. Coloquei a mão fora da janela e a abri. Lentamente o texto foi caindo. Não cheguei a vê-lo chocar-se contra o chão. Todas aquelas palavras esmagadas. Voltei, com um sorriso cínico. O texto fora assassinado. Agora seria impossível entregá-lo. Olhei para Cachimbo, que dormia continuamente.
Decidi pelo mesmo. Noutro dia, talvez uma desculpa, ou a verdade. Logo me perdi no corredor. Deixei para trás o maço de cigarros, a velha máquina, a janela aberta, as luzes acesas, o quadro e outros pormenores. Apenas passei a mão na garrafa de uísque e a levei ao quarto, boa companheira. Cachimbo percebeu e logo veio atrás, sem alarde. Então um silêncio invadiu por quase completo e uma ponta de curiosidade veio, perguntando para onde teria ido. Fechei os olhos, resisti. Finalmente o sono!

(Arte: "The Dutch Settlers - Part I", de Jean-Michel Basquiat)

(Alberto Granato, escritor, albertogranato@fgtreinamentos.com.br)

sábado, 16 de junho de 2007

A FEIÚRA É A BELEZA QUE SOFRE DE TIMIDEZ

Dizer que uma pessoa é feia é o mesmo que dizer que não existe, que é um rascunho descartado, um desenho borrado, uma pintura que não aconteceu. Dizer que uma pessoa é feia é o mesmo que dizer que é inválida, imprestável. Dizer que uma pessoa é feia é o mesmo que dizer que sucumbe como uma morta-viva, que degrada o meio ambiente, que é inconveniente. Dizer que uma pessoa é feia é demonstrar o quanto há de fel no coração, o quanto o coração está enegrecido de raiva, preconceito, frustração, o quanto o coração é pior que o pulmão de um fumante inveterado. Dizer que uma pessoa é feia é ser analfabeto visual, é não possuir uma gotícula de sensibilidade, é ser cego, é estar muito ocupado massageando o próprio ego, é andar de muletas achando que é um corredor profissional. Dizer que uma pessoa é feia é afirmar-se ignorante, é ser daltônico sentimental, é não olhar para o próprio desleixo, é não entender nada de beleza, é viver na completa incerteza, é não entender, é atestar a própria imcompetência para viver.

A feiúra não existe. A feiúra é a beleza que sofre de timidez. A feiúra é a beleza que não consegue ser ouvida, porque não ousa, permanece calada, buscando ser esquecida. A feiúra é a beleza com crise de identidade, com sentimento de inferioridade. A feiúra é o avesso da beleza, o reverso do brilho, da ostentação. A feiúra foi inventada para disfarçar a beleza, para que esta pudesse ter sossego, pudesse ir a vários lugares sem despertar a atenção. A feiúra é o sossego da beleza.

O problema é que a feiúra quis ser independente, ter vida própria, não viver à mercê da beleza, mas sair e encher os pulmões de liberdade. Mas arrependeu-se, porque foi rejeitada. O diferente é rejeitado por quem não o compreende, não o aceita. É a forma de anulá-lo, de extingui-lo. A feiúra é a beleza diferente, incompreendida. A feiúra é a beleza perseguida, presa, torturada, queimada numa fogueira, acusada de bruxaria. A feiúra é a beleza despreparada, inocente, virgem, pura.

A feiúra é a beleza que não se mostrou, preferiu permanecer intacta, longe dos carinhos grosseiros de bêbados, longe do apetite sensual de sóbrios. A feiúra é a beleza aquecida numa crisálida, é uma rosa cálida, faminta da seiva do amor. A feiúra é o teste supremo do amor. A feiúra é a beleza que escorregou numa poça. A feiúra é o teste supremo da beleza. A feiúra é o medo que a beleza tem de despertar de manhã e chocar os outros, não a si mesma. A feiúra é a jornada que a beleza realiza por um caminho árido, em busca do autoconhecimento. A feiúra é a válvula de escape para viver para si, não para os outros. A feiúra é uma máscara carnavalesca, refúgio em busca da alegria. A feiúra duela com a beleza, esquecendo-se que duela consigo mesma. A feiúra inexiste, não passa de um conceito inventado por quem não tinha imaginação. Ou tinha em demasia.

Como compreender o chamado padrão de beleza? A feiúra não existe, mas o padrão de beleza é horrendo. É artifical. Mulheres esqueléticas, caveiras com longos cabelos esfiapados, desfilam por passarelas, corredores injustos, ditando como todas as demais devem ser e se vestir. E todas as demais devem ser magérrimas, ossos envoltos em vestidos de cetim, com pele esticada de avelã, sem qualquer indício de rugas ou gorduras, com olhares esguios e sorrisos de maçãs murchas. A beleza artifical não se alimenta. O alimento é seu maior inimigo. A fome, sua maior companheira, sua maior confidente.

A mulher é bela em todas as ocasiões. Não importa se não tenha certos atributos físicos, somente o fato de ser mulher, de poder dar à luz, de amamentar, de sorrir sorrisos de marfim, de ser leal, dinâmica, forte, segura, a tornam bela. Há mulheres que parecem ter sido esculpidas à mão por um gênio, mas destilam veneno e de nada vale a face de pétala. Há mulheres rústicas na forma, porém, sublimes no trato. Estas, cativam pela voz e cavam a beleza represada na alma, afugentando a feiúra, porque sabem que não existe, não passa de uma timidez latente que teima em permanecer.

A beleza está nos corpos levemente roliços, nos cabelos de florestas, nas faces operárias, nas faces lavradoras, onde o suor hidrata e as rugas enfileiram-se, sulcos formados por arados, preparando as plantações vindouras, por máquinas, preparando a produção seguinte. A beleza está no corpo natural, sem implantes, cortes, toques e retoques. A beleza está na pele de riacho cristalino, na música de um violino, nas mãos tenras de emoção. A beleza existe. A beleza é a feiúra que teve coragem de aparecer e mostrar-se, de sair do caixote e lutar contra gigantes, como Dom Quixote. A beleza é a coragem, enquanto a feiúra é a fuga.

Dizer que uma pessoa é bela é dizer que é especial, única. Dizer que uma pessoa é bela é assumir a própria beleza, é despojar-se da hipocrisia, da vaidade, do sofrimento. Dizer que uma pessoa é bela é ser o espelho pelo qual ela verá seu reflexo. Dizer que uma pessoa é bela é alimentá-la com o alimento da alma, é fazê-la sorrir numa chuva de nuvens, é fazê-la flutuar pelos ares, é enchê-la de satisfação, é ler aquilo que está em seu coração, entalhado em ouro. Dizer que uma pessoa é bela, é dizer que não é tímida, que venceu a si mesma, que retirou o casaco da feiúra e o lançou num precipício, que libertou-se do vício da autopiedade, que aceitou a idade. Dizer que uma pessoa é bela é dizer que existe, que é uma obra-prima que existe para ser feliz. Dizer que uma pessoa é bela é dizer que a ama.

(Arte: "Galarina", de Pablo Picasso)

(Elson Teixeira Cardoso)