segunda-feira, 7 de maio de 2007

SOBRE MEUS AMIGOS-FILHOS

Pois é.
Ser pai é atingir um estado de pleno autoconhecimento. É como ter o libreto de uma ópera da alma, e acompanhar essa ópera com os olhos do coração – estes, nunca fecham, nunca piscam, vêem o que está encoberto, lêem o ilegível.
Ser pai é o mesmo que enxergar nos filhos aquilo que estava represado em si mesmo, aquilo que o consciente, em sua limitação, não podia ter acesso.
Ser pai é ter certeza de que a vida não é irrelevante, apesar de complexa e, quase sempre, massacrante.
Ser pai é receber mais explicações que fazer indagações, ainda que as explicações venham ao avesso, como as meias que os filhos teimam em não virar depois de retirar do aconchego dos pés, como os agasalhos deixados à deriva, nas cabeceiras das camas, como os sapatos plantados nos corredores, murchando ao relento da casa, pálidos de abandono.
(Então surge a lembrança de que, quando criança, fazia o mesmo. O tempo mudou, mas certas coisas permanecem imóveis: hábitos, tradições, manias... Tudo dentro das gavetas do criado-mudo empoeirado das maneiras de ser e agir.)
Ser pai é repreender, é falar áspero, com voz de leão, mas é afagar as cabeças dos filhos, querendo passear com eles e gritar para todos que são seus filhos, são uma parte de você, com personalidades próprias, que viverão vidas independentes da sua, que um dia serão pais e dirão aos seus filhos como era passear com o avô deles.
Ser pai é nadar junto aos filhos, na piscina, no rio, no mar, acompanhando o progresso das resistências físicas, enquanto você já não é mais aquele de outrora, que nadava metros e metros, deslizando n'água como se ela e você fossem um só.
Ser pai é entender que o amor sentimental somente se completa no amor filial; o que antes era vaidade, hoje é percepção, pois a vaidade diluiu-se na necessidade de deitar-se no tapete da sala, depois de um dia estafante, e imaginar com o amigo-filho, civilizações, castelos, aeronaves – criações de bolha de sabão que contrastam com as diferenças próprias de gerações não tão distantes.
(O velho soldado de chumbo, já antigo quando lhe deram de presente, disputa batalhas homéricas com bonecos articulados e carros de controle-remoto. Quase sempre, os jogos eletrizantes do playstation e do computador de última geração, preenchem o tempo escasso das brincadeiras. Há a necessidade de parar, estudar, trabalhar, mas o apelo para ficar um pouco mais é convincente. Principalmente porque surge a lembrança de que, há séculos, quando criança, não saía da frente do aplle, jogando, treinando para o futuro repleto de MP3s, MP4s, ipods, laptops e palmtops... E todo um emaranhado que, às vezes, o deixa confuso, mas que os amigos-filhos, como mestres da tauromaquia, craques do futebol, regentes de orquestras sinfônicas, dominam, desvendam, regem e vencem, entregando-lhe a solução ao que parecia ser desesperadamente insolúvel.)
Ser pai é orgulhar-se. Não de si mesmo, porque tem consciência das limitações, mas daqueles que dizem “paiiiiiii...” num som infinito de canários, deixando-o embevecido.
Ser pai é entender que não é somente a morte que é definitiva, mas a vida também.
(E se a morte assusta por ser dura, compacta em sua finitude, a vida provoca um sorriso de contentamento, porque viver é bom, apesar de difícil.)
Ser pai é a oportunidade de olhar para o que passou, endireitar o torto, destorcer o retorcido, reconhecer que tudo valeu a pena, mesmo as piores dores.
Ser pai é ser uma árvore que movimenta-se, frondosa à luz do sol ou aos respingos da chuva. Ser pai de filhos afetivos talvez seja mais completo que, simplesmente, ser pai.
(Porque os filhos afetivos vêm até você e o chamam de “paiiiiiii”, sem fazer isso por uma mera carência, por uma mera conveniência. Mas por um amor recíproco que brotou do convívio, da identificação, do respeito. Um amor forte, infinito, sedimentado pela amizade.)
Ser pai de amigos-filhos é poder, ao mesmo tempo, ouvir e contar segredos, é ajudar nos deveres de casa, contar histórias criadas de improviso, é ir ao cinema numa noite de extremo cansaço, é subir no telhado para tocar as estrelas, é fazer o café que tanto gostam, com aroma suave de nuvens, é ganhar um livro reflexivo e dormir ao seu lado, respirando o valor afetivo, é sugerir leituras construtivas, é espantar-se com o amigo-filho adolescente equilibrar as palavras como um malabarista, escrevendo poemas como se cada palavra fosse uma bola de futebol, de tênis, de sinuca, é admirar-se com o amigo-filho menor, criança prodígio, montar quebra-cabeças e móbiles de palavras, rimando diversão com atenção, é tê-los por perto mesmo quando o trabalho é trazido para casa, exigindo horas de pesquisa e escrita por um terreno árido, é receber ajuda quando a impressora trava, é brincar com o cão que late para a própria sombra, é flutuar numa conversa que, toda vez, não dura menos de dez anos e termina toda manhã.
(Arte: "A Sagrada Família", de Michelângelo)
(Elson Teixeira Cardoso)

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