sábado, 2 de junho de 2007

O TEMPO NÃO PASSOU (MINICONTO)

Terminava de pintar um quadro, quando uma nuvem envolveu o estúdio, tornando-o um quadro vivo, um castelo com torre alta, uma outra época. Ele chegou à porta, com o semblante decidido, e tomou-a nos braços. Ela, surpresa, envolta pelo mistério, sentiu seu corpo ser envolvido por uma sensação inebriante, fragrância do amor.

Acordaram ao entardecer, com o desejo exalando dos poros, o amor querendo novas formas. Lá fora, as nuvens eram de várias tonalidades e bailavam à luz ensolarada. As sombras, livres, libertas dos grilhões, formavam uma grande roda, de mãos dadas, entoando canções medievais.

Eles eram um só, na dimensão do prazer. Não diziam nada. Não era preciso. Os movimentos, os olhares, os gestos, bastavam. Compreendiam-se. Ela, terna, recebeu um toque na face ruborizada e permitiu que seus sonhos saíssem da caixa de Pandora. Névoas transparentes, pingos de chuva, reflexos, imagens grávidas, pássaros voando em formação, baleias saltando dos mares, o céu tansbordando de um azul intenso. Tudo podia ser contemplado, enquanto os lábios encontravam-se, imantados pelo amor.

Passaram-se mil anos, apesar de parecer uma hora. Ali, o tempo não passou, permaneceu cristalizado no relógio de parede derretido, ampulheta imóvel. Cada um enxergava-se nos olhos do outro, viajava pela imaginação do outro, respirava a respiração do outro. Cada um era um espelho em que o outro via seu reflexo. Os dois jamais saíram de perto um do outro. Não podiam. Estavam selados pelo amor.

(Arte: "O sonho aproxima-se", de Salvador Dalí)

(Elson Teixeira Cardoso)

VERNISSAGE (MINICONTO)

Todos os convidados da vernissage haviam ido embora, mas ele continuava na sala principal da galeria de arte, estático diante de um quadro, os olhos fixos, esperando algo acontecer. Alguém aproximou-se e gentilmente disse que iriam fechar, ele pediu mais alguns minutos, precisava esperar. O tempo lhe foi concedido, mas as luzes das outras salas foram apagadas.
Houve um relâmpago azul e a mulher saltou do quadro, pele de marfim, brilhante, surrealista, vestida com os cabelos dourados que desciam como água sobre seu corpo. Abraçaram-se e saltaram pela janela, dez andares, mas flutuaram na noite enluarada, revestidos pelo amor, amando-se num amor infinito. Pousaram numa ponte com os corpos entrelaçados, em brasa, iluminados pela aurora que despontava adiante, dando-lhes boas-vindas.
Na galeria de arte, estranharam que no lugar do quadro houvesse apenas uma silhueta da mulher e uma inscrição, talvez um trecho de poema: "e no azul do horizonte,/ o reflexo da lua numa poça,/ acende sobre a ponte,/ corpos de louça/ transmutados, acalorados, encontrados..."
(Arte: "Le Bassin aux Nymphéas", de Monet)
(Elson Teixeira Cardoso)

sexta-feira, 1 de junho de 2007

RESUMO SOBRE A PEÇA "CYRANO DE BERGERAC", DE EDMOND ROSTAND

( LIVRO DE CABECEIRA)
Um apaixonado poeta. Um perspicaz dramaturgo. Um exímio espadachim. Um bravo soldado. Um grande filósofo. Um profundo estudioso da Física, Matemática e Astronomia. Gênio nas artes e nas ciências, Cyrano Savinien Herculés du Bergerac, ou apenas Cyrano de Bergerac, possui qualidades incomuns, porém, a feiúra as encobre, como uma somba sinistra. O nariz avantajado é o motivo de sua frustração. Na França do século XVII, sofre por amar intensamente sua prima, Roxane, jovem, bela, emotiva.
Cyrano de Bergerac, sentindo-se ofendido por um ator medícore, que galanteara Roxane, impede-o de representar sob o pretexto de que era medíocre, e é desafiado a um duelo por um nobre. Enquanto castiga o nobre com a espada, compõe uma balada, ferindo-o no último verso. Após, recebe uma mensagem de Roxanne, que queria encontrá-lo. Supondo que a prima fosse declarar-se enamorada, enche-se de ânimo e, imbatível, ajuda o amigo Ragueneau, poeta, dramaturgo e pasteleiro, que seria morto naquela noite, vencendo nada menos que cem homens, matando cerca de oito.
Durante o encontro com Roxane, na pastelaria de Ragueneau, recebe uma notícia entristecedora. Sua prima amava o jovem cadete do regimento do Capitão Carbon de Castel-Jaloux, Barão Bernard Christian du Neuvillete. Como Cyrano era veterano no regimento, Roxane pede-lhe que proteja Christian. Desolado, aceita. Estava certo que o nariz longo jamais permitiria que tivesse o amor de Roxanne. Cyrano é ofendido por um jovem cadete e o desafia a um duelo. Mas descobre a tempo que é Christian e, para estranhamento dos companheiros, não o fere; antes, o protege. O jovem desculpa-se quando descobre que Cyrano é primo de Roxane e confessa amá-la, mas era ignorante de espírito, não conseguia expressar-se poeticamente. Os dois tornam-se amigos e confidentes, e Cyrano decide ajudá-lo, escrevendo cartas e poemas a Roxane, que apaixona-se cada vez mais, encantada com as belíssimas palavras.
Uma das cenas mais tocantes é quando Christian, sob a sacada de Roxane, diz palavras que são sopradas por Cyrano, a poucos metros de distância. Como Christian não conseguia ouvir direito, o próprio Cyrano derrama-se em palavras de amor, confessando o que julgava ser inconfessável. Mas Roxane achava que era Christian e, encantada, o recebe em seu quarto. Cyrano vai embora, arrasado. Cyrano ainda ajuda Christian e Roxane a casarem-se às escondidas, mas Christian é enviado a uma batalha para morrer, pois um dos mandatários do país intencionava casar-se com Roxane.
Cyrano vai com Christian, para protegê-lo, escrevendo uma carta por dia a Roxane, em nome de Christian. Chora, manchando uma das cartas com a lágrima do sofrimento pelo desamor. Christian descobre que Cyrano amava Roxane e o estimula a declarar-se a ela, para que pudesse escolher entre os dois. É ferido de morte. Mas Cyrano não se declara a Roxane, respeitando o amor que sentia por Christian, ainda que amasse a alma de Cyrano nas cartas que julgava ser de Christian.
Roxane guarda luto permanente por Christian e refugia-se num convento. Depois de catorze anos de visitas diárias a Roxane, Cyrano chega ferido. Nunca rendera-se a bajulações, sempre fora crítico. Uma das críticas publicadas rendeu-lhe um atentado vingativo. Ferido, quase morto, foi visitar seu amor e levar as notícias de fora, como de costume. Inesperadamente, pediu a Roxane para ler a última carta de Christian, que ela carregava consigo, num escapulário. Ele, fraco, debilitado, inicou a leitura e, traindo-se, deixou à mostra o mesmo timbre de voz da sacada, a mesma emoção, o mesmo amor. Roxane, às lágrimas, teve certeza de que ele era o autor da carta, aquele que a embevecera sob a sacada. Disse amá-lo, sempre o amara, a alma das cartas era sua. Mas Cyrano, àquela altura caído, ainda conseguiu dizer-lhe que era tarde. E morreu.
(Arte: Fotografia do ator José Ferrer, premiado pela impressionante interpretação em "Cyrano de Bergerac", na primeira adaptação para o cinema, na década de 40.)

(Elson Teixeira Cardoso)

HIPOCRISIA (MINICONTO)

(CONTOS ENCONTROS ENCANTOS - TEMA: HIPOCRISIA)

Ao descer da tribuna, após veemente discurso de condenação ao aborto, sua assessora lhe entrega o celular familiar. Após três minutos apenas escutando, a mesma lágrima que lhe afoga o olho, acaba por engasgar-lhe numa frase: - Manda tirar!
(Arte: "Madame Roulin Rocking the Cradle (La Berceuse), de Vincent Van Gogh)
(Silvio Vasconcellos, poeta, www.minicontos.blogspot.com)

AMOR ENCONTRADO (MINICONTO)

Dizia que nunca amaria novamente; sofrera muito e as marcas ainda pemaneciam no coração, visíveis em seu semblante sofrido. Chegara a pensar em morrer. Mas, ao conhecê-lo, algo mudou. Lutou contra si mesma, mas não adiantou. Ele também desistira do amor, porém, os sorrisos denunciaram que tinham em comum mais do que imaginavam. O aperto de mão, formal, foi singelo, um beijo, elo que uniu os corpos, no estremecimento do prazer. Foi a síntese do amor encontrado.

Sob a lua, em alto-mar, os corpos firmaram-se, estrelas no cosmos. Sob o sol, na areia da praia, os corpos reluziram, nuvens sutis. Fecharam os olhos e, ofegantes, chegaram ao futuro, sedentos de amor. Caminharam pelas alamedas dos sonhos, de mãos dadas e corpos unidos, por sessenta anos. Amando-se a cada instante.

(Arte: "Olympia", de Édouard Manet)

(Elson Teixeira Cardoso)

quinta-feira, 31 de maio de 2007

COR DA SAUDADE

(DA SEÇÃO BLOGS E SITES RECOMENDADOS)
(Fonte: Estadão, 31/05/2007)
A mãe saiu de casa cedo com seu lenço branco na bolsa. Não precisou fazer o café de seu filho, ou pedir que levasse um casaco porque ia esfriar. Não poderia fazer mais nada onde ele estava agora. Estendeu seu lenço ao vento como protesto e tirou da bolsa outro negro para enxugar suas lágrimas.
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(mini-contado por Silvio Vasconcellos, em Quinta-feira, Maio 31, 2007)
(Gentilmente enviado pelo poeta Silvio Vasconcellos, do Rio Grande do Sul, blog: www.minicontos.blogspot.com)

BEIJO (MINICONTO)

Beijavam-se ininterruptamente desde quando não existiam, desde a criação do universo. Beijavam-se num beijo infinito, ao som de uma orquestra de violinos. Beijavam-se singularmente e o amor cabia na dimensão dos lábios uníssonos, apaixonados numa epopéia sublime.

(Arte: "Violinos", de Ana Luisa Kaminski, pintora-poeta e vice-versa, de Santa Catarina, blog: www.ancoraeasas.blogspot.com). Pintura extraída do site http://www.luisakaminski.nafoto.net)

(Elson Teixeira Cardoso)

A PROSA VOADORA DE DIANA MENASCHÉ

O mundo da literatura é realmente incrível. Num instante, não temos conhecimento da existência de determinado escritor, poeta. De repente, lemos algo casualmente e é como se conhecêssemos os textos do autor, de longa data.
Experimentei isso recentemente, quando li um conto da escritora Diana Menasché. Bastou um único conto para que sua poética se refugiasse na minha alma, e me tornasse dependente. Dependente de algo estimulante, instrutivo. Dependente de textos curtos que traduzem a alma através da linguagem da beleza.

Quem não conhece Diana Menasché, deve rapidamente conhecê-la, acessando seu interessante blog (www.dianamenasche.blogspot.com), que tem o sugestivo título de LIVROVOADOR - O LIVRO É INSTRUMENTO DE SOPRO. Onde encontrar algo mais moderno, lírico e conciso ao mesmo tempo? Há poucos textos publicados, pois o blog é recente. Entretanto, é possível encontrar preciosidades como o miniconto "O Livro Voador", uma espécie de texto híbrido - poema em prosa - onde a utilização de paralelismos (repetições) denuncia o estilo dialético, debatedor, da autora:

"Quando chove, os trovões o ferem...
Quando é tarde, ele dorme no ar.
Quando é cedo, ele espera - até as lojas fecharem...
Mas se ninguém o abre, ele se encolhe atrás do disco voador."

Cada linha é um verso formado pela repetição do "quando", que condensa uma explicação própria, até desaguar na explicação final. O paralelismo remete às águas correntes de um rio. Vê-se, claramente o cotidiano ser transformado em sonho. É o cotidiano literarizado. Isto é visível, também, ou principalmente, no miniconto "Dez Farpas Encravadas", sobre a hipocrisia, publicado neste blog, na SÉRIE MINICONTOS TEMÁTICOS, em 30/05/2007. Título forte que condensa o texto cortante, penetrante. Belo.

Os contos de Diana Menasché são sutis, inventivos. São contos que permitem enxergar a resposta do presente. Presente, enquanto tempo. Presente, enquanto dádiva.
O valor literário de um texto pode ser medido quando uma situação simples, corriqueira, é captada, fotografada e transposta com beleza. O conto "Faxina", é um exemplo típico:

"Vai o pó pelos caminhos dos corredores, vão os pedaços de madeira pelos ralos da cozinha, vão as fitas de vídeo para o elevador social, os tecidos velhos para os fundos dos fundos da casa, a louça antiga para o congelador. (...) "(...) Vão os livros para o brechó, os cadernos para a casa da Maria. (...) "(...) Eu quero saber onde está o meu destino, o meu pedaço nesse mundo, o meu consolo de solidão."

No conto, o ato de limpar, arrumar, guardar, procurar, remexer, ganha dimensão reflexiva, rasgo psicanalítico. A necessidade de uma faxina material é a mesma necessidade de uma faxina emocional, rememorar o passdo e expurgar o que não é mais útil. Encontro do destino, inventário que há por vir. Encontro do espaço geográfico da vida, presença marcante. Encontro do que pode suplantar a solidão. O conto em si, é um monólogo. A prosa flui, marcante, cortante, dilacerante, em cenas seqüenciais. A prosa de Diana Menasché dialoga com a dramaturgia. Não é preciso ler vários contos para perceber isso. As cenas estão prontas, à espera da interpretação.

A prosa de Diana Menasché é voadora; voa sobre o cotidiano, as situações aparentemente banais e capta as cenas, como um satélite, literarizando, mostrando o ritmo acelerado da vida, a sentença que a vida impõe, como no conto "Frangalhos":
"(...) Mova-se ou a vida te come."
Síntese da condição humana. Assim pode ser descrita a prosa voadora de Diana Menasché.
(Arte: "Mulheres na noite", de Joan Miró)

(Elson Teixeira Cardoso)

...MURMÚRIO MUSICAL....

(CONTOS ENCONTROS ENCANTOS)
...Os movimentos musicais se alternam e se confundem, em espiral, na história de cada um de nós... Afinações, sinfonias... Entre sons e silêncios, a canção vital vai surgindo em cada coração, em cada alma que singra, sangra e sonha... Caminhos e pautas entrecruzados, harmonias e dissonâncias, em me lodias que acalmam, encantam, envolvem, libertam,incitam, enfeitiçam, esperam, renascem, renovam a seiva compondo novas notas e invenções, dando voz e luz ao "murmúrio infinito do cosmos"...

(Arte: "Violinos", da pintora-poeta e vice-versa, Ana Luisa Kaminski, extraído do site: www.luisakaminski.nafoto.net)

(Fragmento de texto gentilmente enviado por Ana Luisa Kaminski, poeta-pintora e vice-versa, de Santa Catarina, blog: www.ancoraseasas.blogspot.com)

quarta-feira, 30 de maio de 2007

DEZ FARPAS ENCRAVADAS

(CONTOS ENCONTROS ENCANTOS - TEMA: HIPOCRISIA)
Quando ela diz come, come, pega mais um pedacinho, e depois diz que eu estou gorda. Quando ela diz realmente, esse teu ex é um crápula, e em seguida o devora na primeira oportunidade. Quando ela fala claro, pode dormir aqui, e mal chega a noite já começa a reclamar. Quando ela diz eu te empresto, fica ótimo em você, enquanto acha horrível, mas é o único que ela pode emprestar. Quando ela desmancha o noivado na noite de casamento e simplesmente repete: foi ele que insistiu comigo para casar, eu nunca quis.
Quando corro atrás do que não desejo, para depois reclamar da pressão social.
Quando aceito cargos que não suporto, para me fazer de vítima e mártir da nação.
Quando mancho minha saia com o molho que eu mesma preparei, e percebo que a culpa é do tomate.
Quando me aproveito do próximo, e concluo que ele me usou.
Quando tomo chá-de-simancol, apenas para começar tudo outra vez.

(Arte: "Glass with Hellebores", de Vincent Van Gogh)

(Gentilmente enviado por Diana Menasché, escritora, Rio de Janeiro, www.dianamenasche.blogspot.com)

PENA CAPITAL (MINICONTO)

(CONTOS ENCONTROS ENCANTOS - TEMA: HIPOCRISIA)

Defendia a pena de morte exaustivamente, não apenas para crimes hediondos, mas para todo tipo de crime. Crime é Crime. Como não defendê-la se a criminalidade crescia a passos largos e era perigoso ir à padaria? Como não defendê-la se crianças eram mortas como se fossem cães sarnentos? Como não defendê-la se os cidadãos honestos, trabalhadores, viviam à mercê de vagabundos que, além de levar o que era ganho graças ao suor, espancavam, matavam?

Finalmente, a pena de morte, a pena capital, foi instituída no país. Rejubilou-se de alegria.

Algum tempo depois, seu filho foi preso, acusado de participação num seqüestro. Crime hediondo. Foi julgado e condenado à pena capital. Perguntaram-lhe o que achava da condenação de seu filho. Desolado, respondeu:

"A pena de morte é a maior crueldade que existe. Um ato desumano. Um ato bestial."

(Arte: "O Grito", de Edvard Munch)

(Elson Teixeira Cardoso)

INVASÃO (MINICONTO)

(CONTOS ENCONTROS ENCANTOS - TEMA: HIPOCRISIA)
"Sou favorável à reforma agrária. É um absurdo que este país possua uma imensidão de terras improdutivas, enquanto centenas de milhares de agricultores perambulam sem um único hectare para plantar uma lavoura, sem poder cuidar de uma roça. É uma desumanidade."
Aplausos.
Ao terminar seu discurso, num auditório repleto de líderes de movimentos sociais, o candidato a deputado federal, soube pelo seu assessor, que um grupo de cem homens, ao que parecia, do MST, invadira uma de suas fazendas, no início da noite. Ele, possesso, bradou:
"Bandidos. Mande os jagunços irem pra lá. Que os expulsem à bala."
(Arte: "Daubigny's Garden", de Vincent Van Gogh)
(Elson Teixeira Cardoso)

ESCRAVIDÃO (MINICONTO)

(CONTOS ENCONTROS ENCANTOS - TEMA: HIPOCRISIA)
Abolicionista por convicção, conseguira convencer vários colegas do curso de Direito a aderirem a uma causa tão importante para o Brasil. O século XIX estava no fim, a escravidão deveria ser abolida como nos Estados Unidos.
Inesperadamente, soube que um tio-avô distante deixara-lhe grande soma em contos de réis, além de uma fazenda de café. Ao receber a notícia, entre surpreso e confuso, teve a má notícia de que a fazenda contava com algumas dezenas de escravos. O portador das notícias completou que uma cláusula no testamento impossibilitava que recebesse a herança, caso alforriasse os escravos. Como sabia que era abolicionista, perguntou-lhe, ironicamente:
"O que Vossa Mercê pretendes fazer a respeito? Certamente, recusarás a herança?"
Sem piscar os olhos, respondeu, de chofre:
"Manterei os escravos. Se for preciso, comprarei outros. Onde assino."
(Arte: "Cyprestes With Two Female Figures, de Vincent Van Gogh)
(Elson Teixeira Cardoso)

terça-feira, 29 de maio de 2007

ABORTO (2) (MINICONTO)

(CONTOS ENCONTROS ENCANTOS - TEMA: HIPOCRISIA)

Fervorosa defensora do aborto, dizia que toda mulher tinha o direito de escolher o que fazer com o próprio corpo. Portanto, poderia escolher entre ter ou não ter um filho. O Estado não poderia intervir nessa questão, ninguém poderia intervir nessa questão; deveria deixar à escolha das cidadãs.

Voltou de uma longa viagem e soube que o filho, universitário, engravidara a namorada.

"Grávida? Um filho? Você não tem responsabilidade para ser pai. Nem terminou os estudos."

"Mas, mãe, aconteceu. Nós nos amamos. Queremos esse filho. Vamos nos casar."

"Casar? Nada disso. Quem vai sustentá-los? Eu? Ela vai ter que abortar. Eu pago."

(Arte: "Girl in the street, Two coaches in the background, A, de Vincent Van Gogh)

(Elson Teixeira Cardoso)

ABORTO (MINICONTO)

(CONTOS ENCONTROS ENCANTOS - TEMA: HIPOCRISIA)
Notoriamente contrário ao aborto, fundara o MOVIMENTO EM DEFESA DA VIDA, que, em dez anos de existência, contava com milhares de membros em todo o país. Ele viajava de norte a sul, defendendo o fechamento de clínicas clandestinas, e promovendo debates acalorados sobre o aborto, que dizia ser assassinato, crime.
Mas, quando soube que a filha adolescente estava grávida, sofreu um ataque cardíaco e quase morreu. Ao recuperar-se, olhou com raiva para a mulher e a filha, e, peremptório, sentenciou: "Vai ter que abortar."
(Arte: "Girl in the woods", de Vincent Van Gogh)
(Elson Teixeira Cardoso)

segunda-feira, 28 de maio de 2007

ACORDES (MINICONTO)

Sobre a mesa, a taça de vinho evaporava a goles lentos, a meia-luz serenizava a sala e o som acalentava os ouvidos. Pediu licença, levantou-se e foi olhar-se no espelho. A imagem que via era outra, estava resplandecendo, estava diferente. Voltou à mesa e sentiu-se levitando. Alguém tocava violino, acordes sensíveis.
Soube que a felicidade não estava ali, mas nela. Sempre esteve nela. Flutuou, saiu pela janela e, na vastidão noturna, continuou ouvindo os acordes que liam sua alma. Pousou no alto de uma árvore e contemplou a si mesma, bela, musa, com as asas acariciando o vento.

(Arte: "Musa", de Pablo Picasso)

(Elson Teixeira Cardoso)

O CHAMADO ROUCO DA IMAGINAÇÃO

Estava com frio, mas atendi ao convite. Como não atender, se a sogra me convidava para jantar em sua casa. Comida deliciosa! O problema é que ventava muito, o vento decidira passear pelas ruas, caminhando lentamente, apreciando cada objeto que pudesse envolver com seu manto gélido - ele tem dessas coisas, não passa de um brincalhão.
Iria esperar a esposa voltar das compras e iríamos todos. Mas, novamente, a sogra ligou. Teria que ir sozinho, a esposa estava a caminho de seu apartamento, pois fizera compra nas imediações. Significava que teria que ir de moto, tendo o vento como companhia. Tremi. De frio. O vento olhou-me da janela e sorriu, sarcástico. Não perderia a oportunidade de congelar meus ossos. Pensei em desistir, dizer que era melhor deixar para outra vez. Outro dia jantarei aí, não quero sair de casa agora à noite. Sabe, a moto, a rodovia, o vento, o movimento.
Outro dia, quando? Se não queremos sair ou receber alguma coisa, dizemos: fica proutro dia, e, quase sempre, esse "outro dia" não chega. É um dia fictício, o mesmo que dizer: não, obrigado, não quero, nem agora, nem depois. Mas, no meu caso, o outro dia poderia ser na semana seguinte, já que toda semana jantamos juntos, uma, duas vezes.
Fraquejava, quando a esposa ligou e disse que me esperava, que deveria me agasalhar bem, pôr duas calças e cachecol. Recobrei o ânimo e disse que logo chegaria. Não poderia deixá-la recomendar daquela forma e, depois, simplesmente dizer que não iria. Não seria justo com ela, com todos que me esperavam. Saí, sem usar o que achei ser um exagero: duas calças, cachecol. Na verdade, não estava frio, apenas ventava. Teorizei mentalmente que eram duas coisas diferentes. Se apenas ventava, frio não passaria com a concentração no trânsito, agitação das ruas, paradas em inúmeros semáforos. O vento não me alcançaria. Saí, confiante, achando que burlara o vento. Estava tudo calmo, silencioso.
Adiante, um cão uivava baixo, sem voz, mais pela necessidade de uivar, que de chamar seus companheiros, que, àquela altura, estavam recolhidos, dormindo após a refeição de ração. O cão era singular, lembrou-me Médor, o cão do romance "A Jangada de Pedra", de José Saramago. O cão uivava tristemente, como se compusesse uma elegia. Magro, pêlo ralo, raquítico, não devia ter casa, por isso lamentava em seu canto, numa tentativa de exaltar os feitos das alcatéias do passado, de cuja linhagem nada se via nele.
Prossegui, mas tive vontade de parar e falar com o cão. Talvez falasse. Ouviria sua história, cão perdido que era, sua degradação. Mas não parei, fui adiante, me esperavam. Além do mais, não poderia levá-lo para casa, já tenho um que, às vezes, dá vontade de não ter.
Numa esquina, o vento me emboscou, não tive saída, fui atacado. Acelerei e, em questão de minutos, cheguei. O vento, ágil como um puro sangue árabe, esteve ao meu lado, me aporrinhando, como era de se esperar. Antes de subir ao apartamento, ofegante pelo esforço físico - o vento retirara meu fôlego -, percebi que há alguns metros, o cão que uivava estava parado, silencioso, cubista, olhar lânguido em minha direção. Como? Não poderia ter corrido quilômetros. Não teria condições e força, e, mesmo que tivesse, não seria possível. O vento, antes de me deixar em paz, disse para não subestimar nada, nem ninguém. Pensei em ao menos alimentar o cão, é claro que estava com sede, mas, entre o instante de tocar o interfone e olhar novamente à rua, o animal sumira. Estranhei.
Subi. Não disse nada a ninguém. Minha esposa, sorridente, veio até mim e me deu um par de luvas de presente. Fiquei feliz. Como é bom ganhar algo que se tem necessidade, água fresca no deserto quente.
As luvas são as meias das mãos. As luvas são os agasalhos das mãos. As luvas são a segunda pele das mãos.
Jantamos, fomos embora e não vi mais o cão. A partir daquele dia, ouço minha esposa quando diz que está frio e que devo usar agasalho reforçado, e não subestimei mais nada, nem ninguém. E fiz amizade com o vento. Quando estou de moto, ele vai de carona.
De vez em quando, ouço um uivo distante, como se fosse de lobo. Um uivo colorido, plástico, um uivo com os toques de um pintura de Basquiat. O chamado rouco da imaginação.

(Arte: "Untilled, 1981", de Jean-Michel Basquiat)

(Elson Teixeira Cardoso)

MERGULHO (MINICONTO)

Sentia o chamado das águas. Não conseguia passar pelo mar sem aproximar-se e, ao menos, molhar os pés na água salgada, água de sua infância, água em que repousara, informe, no ventre materno. Naquela noite, contemplava o mediterrâneo. Sentia seu aroma, frescor, romantismo. Um mergulho. Seu corpo incorporou-se ao mar, liquefez-se. Sempre fora do mar, voltara à origem.
No navio, homens desesperados tentavam salvar a mulher que, misteriosamente, lançara-se às águas noturnas do mediterrâneo. Mas não tiveram sucesso. Desaparecera.
Ela flutuava, levada pela correnteza, diluída no êxtase do chamado das águas.
(Arte: "Gala olhando o mar mediterrâneo", de Salvador Dalí)
(Elson Teixeira Cardoso)

domingo, 27 de maio de 2007

APONTAMENTO LITERÁRIO (5)

O poeta cósmico Silvio Vasconcellos, do Rio Grande do Sul, também tem um blog (www.minicontos.blogspot.com) exclusivo para minicontos, uma espécie de subgênero literário, que ganhou força nos últimos anos, entre escritores que gostam de ousar tanto na estética, quanto no conteúdo. O diferencial é que são minificções produzidas a partir de fatos cotidianos, notícias veiculadas pela mídia. É a arte servindo como reflexão da vida, ajudando a compreendê-la melhor. Ótima iniciativa. Confiram.

(Arte: Fotografia de satélite da Terra com a Lua ao fundo)

(Elson Teixeira Cardoso)

SOPRO (MINICONTO)

(À maneira do poeta cósmico Silvio Vasconcellos, amigo)
Aos 13 anos, a vida significava uma imensidão de sonhos. Era linda, alegre, amiga. Naquela noite, iria fotografar as amigas de diversão e cumplicidade. Os monstros surgiram do nada e exigiram sua câmera, mas não entregou, não poderia, era valiosa. Correu. Um estampido e caiu. Os sonhos desfizeram-se num sopro.
(Arte: Pintura de Pablo Picasso)
(Elson Teixeira Cardoso)

TEMPO (MINICONTO)

Olharam-se e ao longo dos olhares os corações soluçaram. Sobre a cama, diluíram-se, reinventaram-se e acordaram já casados há sessenta anos, ainda com os corpos trêmulos e com a impressão de que o tempo não passara.
(Arte: "Jogo de Formas XII", de Odetto Guersoni)
(Elson Teixeira Cardoso)

RESUMO SOBRE O ROMANCE "TODOS OS NOMES", DE JOSÉ SARAMAGO

(LIVRO DE CABECEIRA)
Sr. José é um homem de meia-idade, vive só, numa casa contígua ao prédio da Conservatória Geral do Registo Civil, onde trabalha. Pertence à categoria subalterna dos auxiliares de escrita, trabalhando da manhã à noite, sem parar, para que os oficiais trabalhem de vez em quando; os subchefes, raramente; e o conservador-geral, quase nunca. Nesta distribuição injusta, mede-se o valor de cada um pelo lugar da mesa; a do conservador-geral fica no centro, à frente de todos, acima do nível do chão, imponente, controladora. Sr. José, por falta de opção, distrai-se com o hábito de colecionar recortes sobre pessoas famosas, algo inocente, porém, movido pela curiosidade, lança-se numa empreitada para completar informações imprecisas, investigando, subvertendo regras e regulamentos da repartição. Um dia, manuseia a ficha de uma mulher, morta, e procura desenfreadamente saber como morrera, pois não havia informação. Isto leva-o a adentrar à repartição depois do expediente, falsificar uma credencial e falar em nome da Conservatória, como se estivesse em diligência profissional. Descobre que a mulher suicidara-se. Mergulha em fichas, documentos comprobatórios de vida e morte, e senta-se na cadeira do conservador-geral, sentindo-se o próprio. No auge da clandestinidade, deixa a mediocridade de simples cumpridor de ordens para alçar o posto de um deus, detentor do controle sobre os arquivos, as vidas. Sr. José sempre fora assíduo, mas a tarefa extra deixa-o extenuado; os sinais logo aparecem no trabalho. Inventa doenças e falta, pede para sair mais cedo, não para descansar, mas para ir à cata de informações. O conservador-geral desconfia que há algo errado com o funcionário antigo, exemplar. Sr. José sente-se observado em seu delito, se é que delito cometia. Ouve passos estranhos à noite, na Conservatória. Um dia, vê o conservador-geral dirigir-se à repartição, quando não haveria expediente. Estava para ser descoberto, deveria ser cauteloso. O momento fatídico chega quando o conservador-geral mostra-lhe que descobrira tudo. Sr. José estava enrascado, seria demitido. Mas o conservador-geral prefere agir de outra maneira; cúmplice, sugere que a ficha da mulher fosse simplesmente alterada, de morta para viva, já que a certidão de óbito fora perdida. E sai, deixando-lhe a chave da Conservatória. Sr. José sabe que o documento existe. Decidido, pega uma lanterna na gaveta do conservaodr-geral e, precavido, lança-se à escuridão da sala, com o fio de ariadne, tal Teseu no labirinto do Minotauro.
(Arte: "Jardim", de Satoru Mabe)
(Elson Teixeira Cardoso)