sábado, 9 de junho de 2007

PRIMEIRA VEZ (MINICONTO)

Esperara por aquele momento, não poderia desistir, não queria adiar mais. No quarto, as paredes pulsavam, nervosas, ansiosas, banhando os dois corpos despojados de timidez. Trocaram carícias ingênuas, afagos tórridos e permitiram que os corpos fossem embalados por um beijo reconfortante.
Ela suspirou naquele instante mágico; seus poros dilataram e flores cresceram, tulipas. Ela não era mais ela. Ela era outra, a menina dera lugar à mulher. Chorou, comovida, trêmula de êxtase. Fora sua primeira vez.
Sobre a cama, os corpos desejosos de prazer arderam em brasa, um refugiou-se no outro, um exauriu as forças do outro. Sob a luz opaca do quarto, as almas dissolveram-se e repousaram na ardência do amor consumado.

Ela estava feliz, sentia-se leve, pluma levada pelo vento. Mas uma ponta de saudade da menina que, agora, existia nas lembranças, fez com que prostrasse o rosto entre as pernas e soluçasse. Julgava ter perdido algo. Sentiu-se culpada. Mas isso durou apenas alguns minutos. Teve certeza que não perdera, mas ganhara, era uma vencedora. Interrompeu seus pensamentos quando ele aproximou-se e perguntou se estava bem. Disse que sim e derramou-se num abraço recíproco. Foi o recomeço da ópera de corpos entrelaçados, entregues ao amor.

(Arte: "Nu de Dos", de Pablo Picasso)
(Elson Teixeira Cardoso)

AUTOR E OBRA

SOBRE O CONTO "LUZES DA RIBALTA"
Apesar do mesmo título, o conto "Luzes da Ribalta" não tem relação com o belíssimo filme "Luzes da Ribalta" ("Limelight", 1952) de Charles Chaplin, cuja música é sublime. Se bem que conserva a mesma névoa de melancolia. Uma prostituta prepara-se para "o batente", enquanto ouve Roberto Carlos e enxerga no quarto um camarim, pois quisera ser atriz...
Para saber o restante, é preciso ler o conto publicado, abaixo, que integra o livro "Janelas para Babilônia", do premiado escritor Alberto Granato, meu amigo de muitos anos, companheiro de faculdade e divagações sobre literatura, cinema, teatro, artes plásticas, filosofia, etc. Sua obra literária, além de romances, é constituída de contos, peças teatrais e poemas.
Curiosamente, os contos "Luzes da Ribalta" e "Crônica Que Nunca Escrevi" (este será publicado em breve), ambos do livro "Janelas para Babilônia", foram escolhidos num concurso literário, entre mil trabalhos inscritos, para integrar uma coletânea de contos, porém, na útlima hora, Alberto Granato não permitiu a publicação. Por que? Nem ele mesmo sabe. Talvez tenha sido um rompante da juventude. Talvez tenha sido uma forma de protesto. (Lembrem-se que o filósofo francês Jean Paul Sartre recusou o Prêmio Nobel de Literatura, na década de 60. O motivo? Protesto.)
Sobre os contos, Alberto Granato enviou-me o seguinte comentário:

"Quando eu comecei a juntar algumas idéias para escrever os contos, eu não imaginava muito bem o que escrever. Depois, imaginei que em um prédio decadente, numa rua movimentada do centro de São Paulo, daquelas com banca de jornal, padaria, prostitutas à noite, camelôs, etc, pudesse ser a inspiração que eu precisava. Então, imaginei que se subisse por esse prédio, cada janela de cada apartamento diferente teria algo a me dizer. Fiz questão de buscar pessoas que a maioria pudesse chamar de decadentes, pois era exatamente ali que queria descobrir as coisas. Outro dia vi num filme, acho que foi num filme, que um cara falou que estava à procura de conhecimento, e não da verdade. Eu não tinha entendido direito o que ele estava dizendo. Mas percebi que a proposta do "Janelas para Babilônia" era exatamente isto. Buscar uma versão das coisas, das pessoas, das suas histórias. Nao me importa, aqui, a verdade, me importa apenas conhecer, aprender, descobrir."

Pois bem, passemos à leitura do conto "Luzes da Ribalta".

(Elson Teixeira Cardoso)

LUZES DA RIBALTA

( CONTOS ENCONTROS ENCANTOS)
Um risco de lágrima na pouca maquiagem sobre o rosto impossibilitava concluir o trabalho daquele momento; apoiou contra a face o dedo indicador na altura da boca, e foi subindo sutilmente até os olhos, fechou-os. Faltava pouco para o que ela chamava de “batente”. Balançou a cabeça, não resistia àquele disco do Roberto Carlos, eu choro mesmo, quando eu ouço essa música, dizia ela, engolindo alguns soluços. Todo início de noite era a mesma coisa.

Única recordação de casa, lembrou do filho, dos pais, das irmãs. “Hora do batente, hora do batente!” Seu ponto era o mesmo, a esquina da banca de jornal com a padaria, quase cem metros da portaria do prédio.
Já vestira o vestido curto de couro sintético, vermelho com alças, acima dos joelhos. Longo demais, em comparação aos das outras meninas. Não gostava muito das pernas, tentava escondê-las, pois acreditava já ter passado da idade. A meia era quase branca; sobre a mesa, os brincos de argola; se olhou no espelho, lugar à sala que considerava o camarim. Havia duas lâmpadas acima, refletiam direto ao rosto, sentia-se uma atriz. Iniciou outra do Roberto, soluçava. Recordava o rapaz de sua cidade; “por que não me casei com aquele desgraçado, meu Deus? Por quê?”
Percebeu o rosto um pouco inchado, olhos quase vermelhos e embaçados, colocou os brincos e esboçou um sorriso tímido, disfarçando-se para si mesma. Mais outra lágrima escorreu-lhe dos olhos. E com a voz em soluços abafados, tentava acompanhar, “do tipo que ainda manda flores, apesar do velho tênis...e da calça desbotada, ainda chamo de querida a namorada!”.
Veio-lhe a imagem de Atílio, era dele que gostava; ele, o mesmo que foi ao portão de sua casa, o mesmo que a levou para passear na boléia do caminhão, o mesmo que ela desprezara.
Na estante marrom, desbotada, envelhecida e coberta de poeira, o relógio acusava mais uma hora. Gostava do relógio, comprado no camelô, rosa. Também havia foto do filho, num porta-retratos de plástico preto com detalhes em flores contorcidas e prateadas.
Sentiu um aperto com o peso da solidão, a hora do trabalho aproximava-se, talvez para distraí-la; na realidade já deveria estar lá; “as meninas já devem estar sentindo minha falta”!
Tirou os brincos, veio a imagem da companheira que a abandonara; nem tanto pelo aluguel, com quem dividia, mais pelas conversas que iniciavam lá pelas cinco da manhã, quando terminavam com o último cliente e subiam o prédio pela escadaria, em geral levemente alcoolizadas. A colega fora para o Rio de Janeiro, dançar em boate de Copacabana, estava melhor lá, dizia; “os gringos todos vão para lá, meu bem, fuck me dóllars”. Ela, nem pensar. Ficaria ainda mais longe do filho e dos pais.
Sequer os visitava, mas acreditava estar perto o suficiente para se tranqüilizar. Se ao menos encontrasse uma boate, dançarina virava mais dinheiro. Mas as coisas estavam em crise, assistia ao fim da tarde, ao jornal televisivo; adorava a voz do presidente, achava-o sensual. Felizmente (ou não) aquele dinheiro suado que ganhava pagava o aluguel, a comida, as bijuterias e perfumes que comprava a duras prestações com a moça de nariz fino e voz engraçada. Sobrava algum para mandar ao filho, era pouco.
A pizza esfriava sobre o fogão, não tinha tanta fome, mas era preciso, alguns clientes exigiam demais, às vezes reclamava às companheiras. Sabia também que na sua idade estava ficando galinha velha. Seios caídos, rugas nas pálpebras, o antigo problema com as pernas, “finas demais, até a bunda fica estranha. Sem grana pra plástica, realmente a coisa tá ficando difícil”.
Teria que comer sozinha, estava atrasada e se observava no espelho; usava cílios e unhas postiças. Adorava os programas de final de ano, tudo para ouvir Roberto Carlos, “ele também é lindo”. Parecido com o seu Atílio, ou com o pai, ou com a fantasia que fazia para o filho; era o símbolo do círculo que a cercava. “Ainda falta tanto”.
“Calabresa?!” Não queria comer; por ela, ficava ouvindo aquelas músicas até o amanhecer. Não as ouvia em tom alto, havia criança nova no apartamento ao lado, de olhos brilhantes, iguais aos do seu quando nascera.
A música a impedia de continuar, terminou de comer uma fatia. Não era o suficiente, forçosamente deu mais mordidas noutro pedaço. Voltou ao “camarim”. Tinha que terminar a maquiagem, algumas das meninas com certeza já tinham embarcado nos primeiros afetados, como elas costumavam dizer.
Foi obrigada a reforçar o pó-de-arroz, sempre precisava esconder aquela “cara feia de chorona”. Era sentimental, pesou novamente a solidão. Talvez convidasse alguma para dormir com ela; tinha cama vazia, alguma comida na geladeira, também cerveja gelada, meia garrafa de conhaque e outra de rum, acaso fizesse frio. E o principal, sua vitrola com o disco que trouxera como recordação.
Correu para a janela, tentando identificar quais ainda estavam lá. Era primeiro andar. Viu Aninha Buracão; chamou-a, esta não ouvia. “A Geni também, e a Pérola Negra, metida”! Gritou, ficou ruborizada pela atitude, Buracão percebeu. “Você não vai descer, não? Já perguntaram por você. Desce logo, menina!” Acenou com a mão, correu para o espelho.
Da gaveta tirou a pequena bolsa; levava batom, lápis, preservativos, pois era instruída pela assistência social de uma comunidade filantrópica; também carregava um punhal, que nunca usara. Papel, caneta de brinde, uma pequena agenda, moedas, cartão telefônico, outra caneta, uma toalha de rosto, um lenço, cartão de advogado, às vezes precisava de doutor pra se safar de carrerão de polícia, uma pequena foto do filho e uma medalha de Nossa Senhora, “pra me proteger”.
Antes de levantar, quis permanecer mais. Ficou a olhar a foto do filho, com certeza estava maior que ali. Fixa, sequer se importou com clientes que a esperavam, se é que a esperavam. “Que esperem, maldição!” Não tinha notícias de casa, devia descer e ligar pra eles, saber das coisas. Esperou que terminasse a música. Não havia tempo para virar o disco. A janela podia deixar aberta, apagou a luz que ficava acima do espelho, apanhou a bolsa e foi.

(Arte: "Nu Sentado", de Pablo Picasso)

(Alberto Granato, escritor, albertogranato@fgreinamentos.com.br)

CADA COISA NO SEU NÃO-LUGAR

Ficava irritado quando tropeçava em sapatos deixados pela casa, espalhados, jogados, atrapalhando o tráfego. Ficava irritado quando os lençóis, cobertores, travesseiros, eram jogados no chão, expulsos do recôndito da cama. Ficava irritado quando as roupas eram esquecidas por lugares improváveis, montículos de cores variadas. Ficava irritado quando não encontrava as roupas que queria, nas respectivas gavetas, mas transitando entre outros páramos do guarda-roupa, estrangeiras que não compreendiam o idioma alheio. Ficava irritado quando a louça acumulava-se sobre a pia, copulando e multiplicando-se, formando castas de pratos, copos, talheres, disputando o melhor lugar à sombra da torneira, louça ávida pelo derramamento da cachoeira, banho demorado de detergente e massagem relaxante de esponja. Ficava irritado quando os livros eram retirados das prateleiras das estantes, para não serem lidos, mas somente contemplados e deliberadamente plantados nos sofás, nas mesas, nas cadeiras, nos bancos, tornando a casa uma biblioteca caótica. Ficava irritado quando o DVD do filme raro de Hitchcoch não era retirado do aparelho depois de assistido, e o CD de Seu Jorge sumia da capa original para cair no buraco negro do estojo de inúmeros outros, sem identificação, e demorar a ser encontrado, e não ser encontrado. Ficava irritado quando as portas e janelas da casa eram abertas, mas não fechadas, perdendo o fôlego, esvaziando-se de vitalidade, devido a atitudes inoportunas, relapsas. Ficava irritado quando o porta-malas do carro era enchido de objetos inúteis, encolhendo o espaço, retirando a praticidade e tornando-o obeso, preguiçoso.
Com uma metodicidade que beirava a obsessão, buscava a organização exacerbada, com cada coisa no seu lugar. Admirava a disciplina, o rigor militar de uma caixa de fósforos, com os palitos simetricamente dispostos, à espera do momento de retirada e utilização. Considerava que não havia o que personificasse tanto a ordem quanto uma caixa de fósforos, invenção que julgava perder somente à roda.
Quando vi pela primeira vez a escultura "Roda de bicicleta", de 1913, de Marcel Duchamp, enxerguei apenas uma quinquilharia, um embuste, nada mais que uma roda de bicicleta sobre um banco. Não passava da representação de cada coisa no lugar errado.
Mas despojei-me do preconceito das convenções e olhei além da escultura, perscrutei seu interior, sua alma. Então contemplei duas peças, dois objetos, duas coisas aparentemente sem vocação artística: um banco e uma roda de bicicleta, a roda de bicicleta sobre o banco, sintetizando o pleno equilíbrio da assimetria, a ordem da desordem. Cada coisa no seu não-lugar. Marcel Duchamp foi um dos precursores da arte conceitual, e criador do ready made, a incorporação de elementos da vida cotidiana ao universo artístico. Ou seja, a produção de arte com objetos comprados em qualquer loja, encontrados em qualquer casa.
A obra "Roda de bicicleta" abriu meus olhos para compreender que a beleza da arte está no grau de ousadia, não na busca da perfeição, pois esta inexiste. Um banco e uma roda de bicicleta, madeira e metal interagindo, fazendo amor, dois corpos diluindo-se numa única forma volumosa. Geometria da sensualidade. Síntese de que a inutilidade é um conceito vazio. Há utilidade para tudo.
Hoje tenho outro conceito sobre os lugares em que as coisas devem ser deixadas, guardadas. Penso assimetricamente, não busco a forma, mas a reforma. Quase sempre, a desforma, para explorar os limites do possível. Já não admiro a ordem de uma caixa de fósforos, mas o que pode ser criado a partir dela. Mais que personificação da ordem, é um elemento artístico por si só. É preciso subverter os pilares das convenções, permitir que as coisas tenham a dinâmica da transformação. Cada coisa no seu lugar soa reacionário. É preciso contestar o porquê do lugar ser cativo da coisa.
Cada coisa no seu não-lugar.
Quando este conceito incorpora-se à vida, a sensibilidade para perceber a arte e produzi-la torna-se infinita. Tem-se a percepção de que a realidade é toda uma obra de arte, e o ser humano, um de seus elementos. Aliás, o principal deles.
(Arte: Fotografia do ready made "Roda de bicicleta", de Marcel Duchamp)
(Elson Teixeira Cardoso)

terça-feira, 5 de junho de 2007

MOSAICO (MINICONTO)

(A partir de hoje, alguns textos serão acompanhados de belíssimos mosaicos da artista plástica Yone Lins, que gentilmente permitiu a utilização)

Dançou tanto que seu corpo desprendeu-se milimetricamente, formando uma roda de pequenas partes, mosaico vivo. Seus cabelos confundiram-se com a noite; seus olhos, com as estrelas. Mas não podia permanecer desconexa, longe dela mesma; ela, que tanto buscava entender suas atitudes. Recompôs-se, fragmento por fragmento, recuperando a forma. Entretanto, estava diferente, colorida. O vestido quadriculado apenas protegia seu corpo do vento sereno, porque, transparente, denunciava a mulher que despontara de uma criança.

Dançou novamente, circundada por cores bailantes, mosaicos flutuantes. Enquanto erguia a cabeça, as mãos acompanhavam o gesto, imberbes, à espera do derramamento de prazer, que, antes, sentira, o ritual de passagem que a transformou numa mulher, a chuva fina, mosaico líquido, que a deixou inebriada, mosaico formado.

(Arte: Mosaico de Yone Lins, extraído do site br.geocities.com/yonelinsmosaicos)

(Elson Teixeira Cardoso)

segunda-feira, 4 de junho de 2007

RESUMO SOBRE O ROMANCE "O EVANGELHO SEGUNDO JESUS CRISTO", DE JOSÉ SARAMAGO

( LIVRO DE CABECEIRA)
O anjo Gabriel anunciou à Maria que seria mãe, sem conhecer homem; seria fecundada pelo Espírito Santo. Jesus nasceu como um homem nasceria; chorou, porque o fizeram chorar, e choraria adiante pelo mesmo motivo. Cresceu, personificou o amor, trouxe a si discípulos, apóstolos. Salvou Maria Madalena do apedrejamento, sentenciando à multidão que, aquele que não tivesse pecados que atirasse a primeira pedra. Com Maria Madalena, conheceu o amor de um homem e uma mulher. "(...) Mais que abraçá-la, abraçou-se nela. (...)" Não poderia proclamar o amor se não o conhecesse em sua porção humana.
Jesus atraiu multidões em torno de si, ensinou a misericórdia, o perdão. Foi assediado por Satanás, mas desvencilhou-se. Traído por Judas Iscariotes, foi entregue aos romanos, que temiam as proporções de sua liderança. Preso, foi negado três vezes por Pedro, antes que o galo cantasse. O governador Pilatos não viu culpa em Jesus, mas deixou a multidão escolher entre Ele e Barrabás. Escolheram Barrabás, que foi solto.
Jesus foi crucificado, entre dois ladrões. Sofreu como nenhum outro ser humano poderia sofrer, mas foi abandonado por Seu Pai, no momento de dor, sem saber porque sofria. Sozinho, morreu pela humanidade, a mesma que o matara. E não tivera o amparo de Deus. Seu sangue foi recolhido em jarros. Chorou, porque o fizeram chorar.
(Arte: "Cristo Crucificado", de Salvador Dalí)
(Elson Teixeira Cardoso)