sábado, 21 de julho de 2007

A MORTE DO CARLISMO

Há homens que, de tão poderosos, dão a impressão de serem inabaláveis, até mesmo imortais. Então, surge uma tragédia pessoal e a montanha inabalável estremece; quando não, esfacela-se. Surge uma doença incurável, um mal súbito, e, depois de algum tempo, a morte leva aquele que parecia blindado, que jamais morreria.

A morte do senador Antônio Carlos Magalhães (DEM), que sofreu uma parada cardíaca no dia 20 de julho de 2007, aos 79 anos, é a recente demonstração disso. ACM, como era chamado, constituía-se num empreendimento humano, um patrimônio vivo, tal o poder e influência que exercia na política brasileira. Pois ACM iniciou-se na carreira política na época de estudante, tendo sido presidente do Grêmio do Ginásio da Bahia, e do Diretório Central de Estudantes, da Faculdade de Medicina, onde formou-se.

Em 1954, ACM foi eleito deputado estadual pela conservadora União Democrática Nacional (UDN), ocupando seu primeiro cargo eletivo. Em 1958 e 1962, foi eleito deputado federal, atuando como um dos articuladores do Golpe Militar de 1964. Sob o regime ditatorial que ajudou a instalar-se no país, foi reeleito deputado federal em 1966, desta vez pela não menos conservadora ARENA, sendo nomeado prefeito biônico de Salvador no ano seguinte, ocasião em que construiu a base do carlismo na capital, arregimentando habilmente poder político. Ocupou três mandatos como governador da Bahia, sendo eleito diretamente apenas uma vez. O fato é que foi um governador competente e, no primeiro, iniciado em 1971, soube aproveitar-se do chamado “Milagre Econômico”, levando o Estado a entrar num processo acelerado de industrialização, com a instalação de indústrias no Pólo Petroquímico e realização de obras de grande impacto na capital, o que alavancou o turismo. Depois do primeiro mandato, foi nomeado à presidência das Centrais Elétricas Brasileiras S.A. (Eletrobrás), retornando ao governo da Bahia em 1979, quando sucedeu um afilhado político e deu continuidade ao trabalho do início da década de 70, contando com o apoio da maioria dos prefeitos do Estado, e quase a totalidade das bancadas de deputados federais e estaduais.
Após a abertura política e anistia, ACM ofereceu seu aparato político ao candidato Tancredo Neves, oferecendo-lhe apoio no Colégio Eleitoral. Isto levou-o a ser nomeado ministro de Estado das Comunicações, em 1985. No ano seguinte, ingressou no recém-criado Partido da Frente Liberal (PFL), que, duas décadas depois, viria a ser Democratas (DEM). Toninho Malvadeza, como ACM era jocosamente chamado, devido à truculência e repressão à oposição, durante o regime militar, ocupava um cargo estratégico no governo de José Sarney, ao mesmo tempo em que ampliava seu poder empresarial na Bahia, justamente no setor de telecomunicações.

A derrota do candidato de ACM ao governo da Bahia, em 1986, foi interpretada como a morte anunciada do carlismo, entretanto, em 1990, ACM foi eleito governador no primeiro turno, assumindo no ano seguinte e licenciando-se três anos depois, para concorrer ao Senado, que presidiu entre 1997 e 2001, numa clara demonstração de que o carlismo fortalecera-se ainda mais. Mas, em 1998, seu filho e herdeiro político, deputado federal Luís Eduardo Magalhães, ex-presidente da Câmara dos Deputados, sofreu um ataque cardíaco e faleceu aos 43 anos. Esta, sim, foi a morte anunciada do carlismo, já que ACM pretendia ver o filho no governo da Bahia e, depois, na Presidência da República.

Em 2001, após o escândalo da violação do painel do Senado, ACM foi obrigado a renunciar ao cargo de senador. Em 2002, foi novamente eleito senador, com a maior votação para o cargo, na história da Bahia. Porém, em 2004, a oposição derrotou seu candidato ao governo de Salvador, como prenúncio de duas grandes derrotas que ocorreriam em 2006. O carlismo perdeu o governo da Bahia, no primeiro turno, para Jacques Wagner (PT), ex-ministro do governo Lula, e uma vaga no Senado para João Durval Carneiro (PDT).
O carlismo agonizante sofreu o último baque com a morte de ACM e, ainda que sua vaga no Senado seja ocupada pelo suplente Antônio Carlos Magalhães Júnior, o filho mais velho e presidente da Rede Bahia, que aglutina as inúmeras empresas da família, é certo que o carlismo cumpriu seu ciclo e será sepultado com seu criador. A morte provou que ACM era mortal, e o carlismo, passageiro.
Mas, em que pesem o conservadorismo, apoio à ditadura militar e truculência de ACM durante sua trajetória política, é preciso reconhecer o dinamismo e capacidade administrativa, demonstrados nos cargos ocupados. A Bahia não seria a mesma sem ACM.

(Fotografia: Senador Antônio Carlos Magalhães)

(Elson Teixeira Cardoso)

O ATRASO DE UMA HOMENAGEM ANTECIPADA

Passei a me interessar pela obra do teatrólogo Mauro Rasi, em 1996, quando foi encenada em Bauru, pela primeira vez, seu maior sucesso de público e crítica: a peça “Pérola”, uma belíssima homenagem à sua mãe, Pérola, àquela altura falecida. Foram poucas apresentações no Teatro Universitário Veritas, da USC, inaugurado na ocasião, e os ingressos esgotaram rapidamente. Fiquei entre os sem-ingressos, não consegui assistir às excelentes atuações de Sérgio Mamberti e Vera Holtz, entre outros, mas tive o privilégio de conseguir o autógrafo do autor, numa edição de “Pérola”, que guardo entre as relíquias de minha parca biblioteca.

Três anos depois, “Pérola” foi novamente encenada em Bauru, no mesmo local, quase simultaneamente a “O Crime do Doutor Alvarenga”, uma “adaptação” ou “recriação” de uma peça escrita por seu pai, Oswaldo Rasi (à época, vivo), que teve a interpretação do incomparável Paulo Autran. É desnecessário dizer que assisti a ambas.

Mas por que recordo-me disso somente agora? Será que deveria ter recordado em 2006, quando completaram-se dez anos da primeira apresentação em Bauru, da peça “Pérola”? Será que deveria ter recordado no dia 27 de fevereiro de 2007, quando teria completado cinqüenta e oito anos? Ou será que deveria ter recordado no dia 22 de abril de 2007, quando completaram-se quatro anos que um câncer no pulmão levou-o à morte?

Recordo-me agora e transgrido a ordem natural de esperar pelo momento certo, aquele que vem acompanhado da data solene, sem o qual parece não haver sentido na homenagem. (O homem fica à espera de ocasiões especiais, quando tem o poder de criá-las.) Recordo-me agora, num dia aleatório, sem música de fundo executada por uma orquestra de câmara, sem chuva de papéis picados, sem pompa, apesar de não deixar de ser um dia festivo.

Recordo-me que Mauro Rasi, o principal teatrólogo bauruense – e um dos principais do Brasil -, cuja obra deveria integrar o projeto pedagógico-cultural das escolas da cidade, passou a infância e parte da juventude num sobrado estreito, com uma piscina no quintal exíguo, na rua Bandeirantes, no Centro, imóvel imortalizado na peça “Pérola”. Na década de 60, teve que sair de Bauru para ter seu talento reconhecido – à época, a miopia cultural já prevalecia – e lutou para consolidar sua carreira, sendo um dos criadores do “gênero besteirol” (comédias hilárias). Ao longo de sua carreira, recebeu inúmeros prêmios importantes, porém, nunca deixou de referir-se à cidade que tanto estimava, principalmente na peça “Pérola”, assistida por mais de 300.000 pessoas, no Brasil e Europa.

Recordo-me que Mauro Rasi, que possuía sensibilidade artística para captar a ironia e humor presentes no cotidiano, foi objeto de teses acadêmicas e escreveu, além de peças, textos para programas da Rede Globo de Televisão e crônicas para jornais de grande circulação. Utilizava uma linguagem direta, bem elaborada e sem pedantismo; confundia aqueles que, à primeira vista, consideravam sua peças superficiais, pois, com a simplicidade e prazer de quem vai à padaria, à feira ou à banca de jornais numa manhã de domingo, tratava de temas complexos, indagações seculares do homem, em obras que permitiam o prazer de refletir a partir de situações corriqueiras. Elementos autobiográficos eram constantes, serviam como críticas a si mesmo, porém, certas situações pareciam ser o reflexo do cotidiano de qualquer família.

Recordo-me que Mauro Rasi está sepultado longe de sua cidade-natal, no Cemitério dos Ingleses, no Rio de Janeiro, cidade que soube valorizar seu talento. Sua obra consiste num legado dramatúrgico e, conhecer esse legado – em qualquer momento, em qualquer data, em qualquer ocasião –, é a melhor homenagem que pode ser realizada ao saudoso autor, que completaria sessenta anos em 2009.

(Nota: Crônica publicada no Jornal da Cidade - de Bauru -, em 19/07/2007.)

(Arte: Ilustração para uma entrevista do teatrólogo Mauro Rasi, site: http://www.maurorasi.com.br/)

(Elson Teixeira Cardoso)

quinta-feira, 19 de julho de 2007

A MORTE CALA FUNDO NO CORAÇÃO

O que dizer para alguém que acabou de perder uma pessoa amada? Meus pêsames! Meus sentimentos! Seja forte! Foi a vontade de Deus! Chegou a hora! Estava sofrendo muito! Agora, está descansando! Estas são algumas frases triviais, que não condensam o que a pessoa necessita ouvir num momento de extremo sofrimento, mas quase sempre são utilizadas.
Às vezes, o melhor é não dizer nada, mas somente abraçar e deixar o abraço falar por si. O silêncio de um abraço apertado pode trazer consigo uma enxurrada de palavras (não-ditas) de consolo. Mas como consolar alguém que acabou de perder uma verdadeira parte de si mesmo, alguém que está incompleto? Nenhum ser humano, por mais que saiba que a morte é inevitável, está preparado para a perda definitiva, a perda vedada pelo túmulo. É imensamente doloroso saber que a pessoa com quem convivia, dividindo quase tudo, numa intimidade sublime, simplesmente foi embora, para nunca mais voltar; simplesmente deixou a existência, para viver somente nas lembranças.
Quando um casal se separa, é como se, um para o outro, tivessem morrido. Todos os momentos vividos juntos são lançados nas lembranças e a sensação de sepultamento será maior, dependendo de como tudo terminou. Um amor que chega ao fim é o mesmo que morrer e permanecer vivo. Mas o renascimento de um novo amor é o mesmo que renascer à vida. Somente quem experimentou essa sensação, sabe o quanto é sublime.
O que dizer para alguém que acabou de perder uma pessoa amada numa tragédia? As mesmas frases triviais? Uma morte trágica traz em si a perplexidade, a indignação, a revolta. E, cada vez mais, acontecem mortes trágicas.
A colisão entre o Boeing da Gol e o jatinho Legacy, no Parque do Xingu, no Mato Grosso, no dia 29 de setembro de 2006, provocou 154 vítimas fatais, todos passageiros do Boeing da Gol, dando início à crise do sistema de transporte aéreo no país, que vem beirando o caos.
Em São Paulo, o desabamento da linha 4 do metrô, no dia 12 de janeiro de 2007, provocou sete mortos num acidente resultante da falta de fiscalização, algo impensável para a maior cidade do país.
No Rio de Janeiro, no dia 7 de fevereiro de 2007, ocorreu o assassinato mais que horrendo do garoto João Hélio Fernandes, arrastado até a morte por cerca de sete quilômetros, vítima de um crime que abalou ainda mais os pilares da segurança pública do Rio de Janeiro, e do país.
Se não bastassem essas tragédias, no dia 17 de julho de 2007, em São Paulo, ocorreu o pior acidente aéreo do país. No Aeroporto Internacional de Congonhas, o Airbus 320, da Companhia Aérea TAM, saiu do Aeroporto Salgado Filho, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul, e, ao aterrissar em São Paulo, derrapou na pista, atravessou a Avenida Washington Luiz e colidiu com um galpão da empresa, explodindo e provocando cerca de 186 vítimas fatais confirmadas, podendo haver mais.
Um acidente que ultrapassou os limites da tragédia, provocado pela pista escorregadia, falha mecânica ou imperícia humana, ou tudo junto. Uma catástrofe que fez o Brasil chorar. Que sirva para as autoridades refletirem sobre mudanças imprescindíveis no sistema de transporte aéreo do país, incluindo a retirada de aeroportos de áreas com edifícios e casas no entorno.
Não é fácil lidar com a morte, não existe uma fórmula. Por mais bem preparada que a pessoa esteja, não estará imune ao sofrimento, à sensação de vazio no coração que a perda provoca. E não adiantará dizer que a morte não é um fim em si mesma, mas uma continuidade, um estágio que tem que ser ultrapassado, enfim, é o prosseguimento da vida. Isto, somente o tempo mostrará. Até lá, a dor profunda terá que ser regada com lágrimas, até a ferida cicatrizar, parar de doer.
Talvez não faça diferença, tamanha a dor, mas é possível dizer a todos que perderam o pai, a mãe, o filho, a filha, o irmão, a irmã, o esposo, a esposa, o amigo, que há quem solidarize-se com a perda.
Sofrimento compartilhado é sofrimento que transforma-se em força e determinação.
Aos que sofrem, recebam o consolo de um abraço. Mesmo que seja um abraço a distância.

(Arte: "Guernica", de Pablo Picasso)

(Elson Teixeira Cardoso)