Dizer que uma pessoa é feia é o mesmo que dizer que não existe, que é um rascunho descartado, um desenho borrado, uma pintura que não aconteceu. Dizer que uma pessoa é feia é o mesmo que dizer que é inválida, imprestável. Dizer que uma pessoa é feia é o mesmo que dizer que sucumbe como uma morta-viva, que degrada o meio ambiente, que é inconveniente. Dizer que uma pessoa é feia é demonstrar o quanto há de fel no coração, o quanto o coração está enegrecido de raiva, preconceito, frustração, o quanto o coração é pior que o pulmão de um fumante inveterado. Dizer que uma pessoa é feia é ser analfabeto visual, é não possuir uma gotícula de sensibilidade, é ser cego, é estar muito ocupado massageando o próprio ego, é andar de muletas achando que é um corredor profissional. Dizer que uma pessoa é feia é afirmar-se ignorante, é ser daltônico sentimental, é não olhar para o próprio desleixo, é não entender nada de beleza, é viver na completa incerteza, é não entender, é atestar a própria imcompetência para viver.
A feiúra não existe. A feiúra é a beleza que sofre de timidez. A feiúra é a beleza que não consegue ser ouvida, porque não ousa, permanece calada, buscando ser esquecida. A feiúra é a beleza com crise de identidade, com sentimento de inferioridade. A feiúra é o avesso da beleza, o reverso do brilho, da ostentação. A feiúra foi inventada para disfarçar a beleza, para que esta pudesse ter sossego, pudesse ir a vários lugares sem despertar a atenção. A feiúra é o sossego da beleza.
O problema é que a feiúra quis ser independente, ter vida própria, não viver à mercê da beleza, mas sair e encher os pulmões de liberdade. Mas arrependeu-se, porque foi rejeitada. O diferente é rejeitado por quem não o compreende, não o aceita. É a forma de anulá-lo, de extingui-lo. A feiúra é a beleza diferente, incompreendida. A feiúra é a beleza perseguida, presa, torturada, queimada numa fogueira, acusada de bruxaria. A feiúra é a beleza despreparada, inocente, virgem, pura.
A feiúra é a beleza que não se mostrou, preferiu permanecer intacta, longe dos carinhos grosseiros de bêbados, longe do apetite sensual de sóbrios. A feiúra é a beleza aquecida numa crisálida, é uma rosa cálida, faminta da seiva do amor. A feiúra é o teste supremo do amor. A feiúra é a beleza que escorregou numa poça. A feiúra é o teste supremo da beleza. A feiúra é o medo que a beleza tem de despertar de manhã e chocar os outros, não a si mesma. A feiúra é a jornada que a beleza realiza por um caminho árido, em busca do autoconhecimento. A feiúra é a válvula de escape para viver para si, não para os outros. A feiúra é uma máscara carnavalesca, refúgio em busca da alegria. A feiúra duela com a beleza, esquecendo-se que duela consigo mesma. A feiúra inexiste, não passa de um conceito inventado por quem não tinha imaginação. Ou tinha em demasia.
Como compreender o chamado padrão de beleza? A feiúra não existe, mas o padrão de beleza é horrendo. É artifical. Mulheres esqueléticas, caveiras com longos cabelos esfiapados, desfilam por passarelas, corredores injustos, ditando como todas as demais devem ser e se vestir. E todas as demais devem ser magérrimas, ossos envoltos em vestidos de cetim, com pele esticada de avelã, sem qualquer indício de rugas ou gorduras, com olhares esguios e sorrisos de maçãs murchas. A beleza artifical não se alimenta. O alimento é seu maior inimigo. A fome, sua maior companheira, sua maior confidente.
A mulher é bela em todas as ocasiões. Não importa se não tenha certos atributos físicos, somente o fato de ser mulher, de poder dar à luz, de amamentar, de sorrir sorrisos de marfim, de ser leal, dinâmica, forte, segura, a tornam bela. Há mulheres que parecem ter sido esculpidas à mão por um gênio, mas destilam veneno e de nada vale a face de pétala. Há mulheres rústicas na forma, porém, sublimes no trato. Estas, cativam pela voz e cavam a beleza represada na alma, afugentando a feiúra, porque sabem que não existe, não passa de uma timidez latente que teima em permanecer.
A beleza está nos corpos levemente roliços, nos cabelos de florestas, nas faces operárias, nas faces lavradoras, onde o suor hidrata e as rugas enfileiram-se, sulcos formados por arados, preparando as plantações vindouras, por máquinas, preparando a produção seguinte. A beleza está no corpo natural, sem implantes, cortes, toques e retoques. A beleza está na pele de riacho cristalino, na música de um violino, nas mãos tenras de emoção. A beleza existe. A beleza é a feiúra que teve coragem de aparecer e mostrar-se, de sair do caixote e lutar contra gigantes, como Dom Quixote. A beleza é a coragem, enquanto a feiúra é a fuga.
Dizer que uma pessoa é bela é dizer que é especial, única. Dizer que uma pessoa é bela é assumir a própria beleza, é despojar-se da hipocrisia, da vaidade, do sofrimento. Dizer que uma pessoa é bela é ser o espelho pelo qual ela verá seu reflexo. Dizer que uma pessoa é bela é alimentá-la com o alimento da alma, é fazê-la sorrir numa chuva de nuvens, é fazê-la flutuar pelos ares, é enchê-la de satisfação, é ler aquilo que está em seu coração, entalhado em ouro. Dizer que uma pessoa é bela, é dizer que não é tímida, que venceu a si mesma, que retirou o casaco da feiúra e o lançou num precipício, que libertou-se do vício da autopiedade, que aceitou a idade. Dizer que uma pessoa é bela é dizer que existe, que é uma obra-prima que existe para ser feliz. Dizer que uma pessoa é bela é dizer que a ama.
(Arte: "Galarina", de Pablo Picasso)
(Elson Teixeira Cardoso)
Um comentário:
Puxa, isso me remete ao sábio que falou para alguém que reclamou da sua aparência:
- Não gostou? Reclame com o meu Criador!
Boa sorte sempre.
Que possamos exercitar o espírito de tolerância e de bondade com todas as criaturas ao redor.
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