sábado, 9 de junho de 2007

LUZES DA RIBALTA

( CONTOS ENCONTROS ENCANTOS)
Um risco de lágrima na pouca maquiagem sobre o rosto impossibilitava concluir o trabalho daquele momento; apoiou contra a face o dedo indicador na altura da boca, e foi subindo sutilmente até os olhos, fechou-os. Faltava pouco para o que ela chamava de “batente”. Balançou a cabeça, não resistia àquele disco do Roberto Carlos, eu choro mesmo, quando eu ouço essa música, dizia ela, engolindo alguns soluços. Todo início de noite era a mesma coisa.

Única recordação de casa, lembrou do filho, dos pais, das irmãs. “Hora do batente, hora do batente!” Seu ponto era o mesmo, a esquina da banca de jornal com a padaria, quase cem metros da portaria do prédio.
Já vestira o vestido curto de couro sintético, vermelho com alças, acima dos joelhos. Longo demais, em comparação aos das outras meninas. Não gostava muito das pernas, tentava escondê-las, pois acreditava já ter passado da idade. A meia era quase branca; sobre a mesa, os brincos de argola; se olhou no espelho, lugar à sala que considerava o camarim. Havia duas lâmpadas acima, refletiam direto ao rosto, sentia-se uma atriz. Iniciou outra do Roberto, soluçava. Recordava o rapaz de sua cidade; “por que não me casei com aquele desgraçado, meu Deus? Por quê?”
Percebeu o rosto um pouco inchado, olhos quase vermelhos e embaçados, colocou os brincos e esboçou um sorriso tímido, disfarçando-se para si mesma. Mais outra lágrima escorreu-lhe dos olhos. E com a voz em soluços abafados, tentava acompanhar, “do tipo que ainda manda flores, apesar do velho tênis...e da calça desbotada, ainda chamo de querida a namorada!”.
Veio-lhe a imagem de Atílio, era dele que gostava; ele, o mesmo que foi ao portão de sua casa, o mesmo que a levou para passear na boléia do caminhão, o mesmo que ela desprezara.
Na estante marrom, desbotada, envelhecida e coberta de poeira, o relógio acusava mais uma hora. Gostava do relógio, comprado no camelô, rosa. Também havia foto do filho, num porta-retratos de plástico preto com detalhes em flores contorcidas e prateadas.
Sentiu um aperto com o peso da solidão, a hora do trabalho aproximava-se, talvez para distraí-la; na realidade já deveria estar lá; “as meninas já devem estar sentindo minha falta”!
Tirou os brincos, veio a imagem da companheira que a abandonara; nem tanto pelo aluguel, com quem dividia, mais pelas conversas que iniciavam lá pelas cinco da manhã, quando terminavam com o último cliente e subiam o prédio pela escadaria, em geral levemente alcoolizadas. A colega fora para o Rio de Janeiro, dançar em boate de Copacabana, estava melhor lá, dizia; “os gringos todos vão para lá, meu bem, fuck me dóllars”. Ela, nem pensar. Ficaria ainda mais longe do filho e dos pais.
Sequer os visitava, mas acreditava estar perto o suficiente para se tranqüilizar. Se ao menos encontrasse uma boate, dançarina virava mais dinheiro. Mas as coisas estavam em crise, assistia ao fim da tarde, ao jornal televisivo; adorava a voz do presidente, achava-o sensual. Felizmente (ou não) aquele dinheiro suado que ganhava pagava o aluguel, a comida, as bijuterias e perfumes que comprava a duras prestações com a moça de nariz fino e voz engraçada. Sobrava algum para mandar ao filho, era pouco.
A pizza esfriava sobre o fogão, não tinha tanta fome, mas era preciso, alguns clientes exigiam demais, às vezes reclamava às companheiras. Sabia também que na sua idade estava ficando galinha velha. Seios caídos, rugas nas pálpebras, o antigo problema com as pernas, “finas demais, até a bunda fica estranha. Sem grana pra plástica, realmente a coisa tá ficando difícil”.
Teria que comer sozinha, estava atrasada e se observava no espelho; usava cílios e unhas postiças. Adorava os programas de final de ano, tudo para ouvir Roberto Carlos, “ele também é lindo”. Parecido com o seu Atílio, ou com o pai, ou com a fantasia que fazia para o filho; era o símbolo do círculo que a cercava. “Ainda falta tanto”.
“Calabresa?!” Não queria comer; por ela, ficava ouvindo aquelas músicas até o amanhecer. Não as ouvia em tom alto, havia criança nova no apartamento ao lado, de olhos brilhantes, iguais aos do seu quando nascera.
A música a impedia de continuar, terminou de comer uma fatia. Não era o suficiente, forçosamente deu mais mordidas noutro pedaço. Voltou ao “camarim”. Tinha que terminar a maquiagem, algumas das meninas com certeza já tinham embarcado nos primeiros afetados, como elas costumavam dizer.
Foi obrigada a reforçar o pó-de-arroz, sempre precisava esconder aquela “cara feia de chorona”. Era sentimental, pesou novamente a solidão. Talvez convidasse alguma para dormir com ela; tinha cama vazia, alguma comida na geladeira, também cerveja gelada, meia garrafa de conhaque e outra de rum, acaso fizesse frio. E o principal, sua vitrola com o disco que trouxera como recordação.
Correu para a janela, tentando identificar quais ainda estavam lá. Era primeiro andar. Viu Aninha Buracão; chamou-a, esta não ouvia. “A Geni também, e a Pérola Negra, metida”! Gritou, ficou ruborizada pela atitude, Buracão percebeu. “Você não vai descer, não? Já perguntaram por você. Desce logo, menina!” Acenou com a mão, correu para o espelho.
Da gaveta tirou a pequena bolsa; levava batom, lápis, preservativos, pois era instruída pela assistência social de uma comunidade filantrópica; também carregava um punhal, que nunca usara. Papel, caneta de brinde, uma pequena agenda, moedas, cartão telefônico, outra caneta, uma toalha de rosto, um lenço, cartão de advogado, às vezes precisava de doutor pra se safar de carrerão de polícia, uma pequena foto do filho e uma medalha de Nossa Senhora, “pra me proteger”.
Antes de levantar, quis permanecer mais. Ficou a olhar a foto do filho, com certeza estava maior que ali. Fixa, sequer se importou com clientes que a esperavam, se é que a esperavam. “Que esperem, maldição!” Não tinha notícias de casa, devia descer e ligar pra eles, saber das coisas. Esperou que terminasse a música. Não havia tempo para virar o disco. A janela podia deixar aberta, apagou a luz que ficava acima do espelho, apanhou a bolsa e foi.

(Arte: "Nu Sentado", de Pablo Picasso)

(Alberto Granato, escritor, albertogranato@fgreinamentos.com.br)

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