sábado, 9 de junho de 2007

CADA COISA NO SEU NÃO-LUGAR

Ficava irritado quando tropeçava em sapatos deixados pela casa, espalhados, jogados, atrapalhando o tráfego. Ficava irritado quando os lençóis, cobertores, travesseiros, eram jogados no chão, expulsos do recôndito da cama. Ficava irritado quando as roupas eram esquecidas por lugares improváveis, montículos de cores variadas. Ficava irritado quando não encontrava as roupas que queria, nas respectivas gavetas, mas transitando entre outros páramos do guarda-roupa, estrangeiras que não compreendiam o idioma alheio. Ficava irritado quando a louça acumulava-se sobre a pia, copulando e multiplicando-se, formando castas de pratos, copos, talheres, disputando o melhor lugar à sombra da torneira, louça ávida pelo derramamento da cachoeira, banho demorado de detergente e massagem relaxante de esponja. Ficava irritado quando os livros eram retirados das prateleiras das estantes, para não serem lidos, mas somente contemplados e deliberadamente plantados nos sofás, nas mesas, nas cadeiras, nos bancos, tornando a casa uma biblioteca caótica. Ficava irritado quando o DVD do filme raro de Hitchcoch não era retirado do aparelho depois de assistido, e o CD de Seu Jorge sumia da capa original para cair no buraco negro do estojo de inúmeros outros, sem identificação, e demorar a ser encontrado, e não ser encontrado. Ficava irritado quando as portas e janelas da casa eram abertas, mas não fechadas, perdendo o fôlego, esvaziando-se de vitalidade, devido a atitudes inoportunas, relapsas. Ficava irritado quando o porta-malas do carro era enchido de objetos inúteis, encolhendo o espaço, retirando a praticidade e tornando-o obeso, preguiçoso.
Com uma metodicidade que beirava a obsessão, buscava a organização exacerbada, com cada coisa no seu lugar. Admirava a disciplina, o rigor militar de uma caixa de fósforos, com os palitos simetricamente dispostos, à espera do momento de retirada e utilização. Considerava que não havia o que personificasse tanto a ordem quanto uma caixa de fósforos, invenção que julgava perder somente à roda.
Quando vi pela primeira vez a escultura "Roda de bicicleta", de 1913, de Marcel Duchamp, enxerguei apenas uma quinquilharia, um embuste, nada mais que uma roda de bicicleta sobre um banco. Não passava da representação de cada coisa no lugar errado.
Mas despojei-me do preconceito das convenções e olhei além da escultura, perscrutei seu interior, sua alma. Então contemplei duas peças, dois objetos, duas coisas aparentemente sem vocação artística: um banco e uma roda de bicicleta, a roda de bicicleta sobre o banco, sintetizando o pleno equilíbrio da assimetria, a ordem da desordem. Cada coisa no seu não-lugar. Marcel Duchamp foi um dos precursores da arte conceitual, e criador do ready made, a incorporação de elementos da vida cotidiana ao universo artístico. Ou seja, a produção de arte com objetos comprados em qualquer loja, encontrados em qualquer casa.
A obra "Roda de bicicleta" abriu meus olhos para compreender que a beleza da arte está no grau de ousadia, não na busca da perfeição, pois esta inexiste. Um banco e uma roda de bicicleta, madeira e metal interagindo, fazendo amor, dois corpos diluindo-se numa única forma volumosa. Geometria da sensualidade. Síntese de que a inutilidade é um conceito vazio. Há utilidade para tudo.
Hoje tenho outro conceito sobre os lugares em que as coisas devem ser deixadas, guardadas. Penso assimetricamente, não busco a forma, mas a reforma. Quase sempre, a desforma, para explorar os limites do possível. Já não admiro a ordem de uma caixa de fósforos, mas o que pode ser criado a partir dela. Mais que personificação da ordem, é um elemento artístico por si só. É preciso subverter os pilares das convenções, permitir que as coisas tenham a dinâmica da transformação. Cada coisa no seu lugar soa reacionário. É preciso contestar o porquê do lugar ser cativo da coisa.
Cada coisa no seu não-lugar.
Quando este conceito incorpora-se à vida, a sensibilidade para perceber a arte e produzi-la torna-se infinita. Tem-se a percepção de que a realidade é toda uma obra de arte, e o ser humano, um de seus elementos. Aliás, o principal deles.
(Arte: Fotografia do ready made "Roda de bicicleta", de Marcel Duchamp)
(Elson Teixeira Cardoso)

Um comentário:

Diana Menasché disse...

Acho que deixei um comentário para este texto...
como não sei se ele se perdeu (isso não é incomum!!) vou deixar mais um.

Assim que li a descrição do caos que você deu, achei engraçada a relação entre ele e a obra de Duchamp! Acabei de escrever um trabalho sobre dada e surrealismo! E achei legal essa ligação com o caos de todo dia... e o TOC a ele correspondente!hehe