segunda-feira, 28 de maio de 2007

O CHAMADO ROUCO DA IMAGINAÇÃO

Estava com frio, mas atendi ao convite. Como não atender, se a sogra me convidava para jantar em sua casa. Comida deliciosa! O problema é que ventava muito, o vento decidira passear pelas ruas, caminhando lentamente, apreciando cada objeto que pudesse envolver com seu manto gélido - ele tem dessas coisas, não passa de um brincalhão.
Iria esperar a esposa voltar das compras e iríamos todos. Mas, novamente, a sogra ligou. Teria que ir sozinho, a esposa estava a caminho de seu apartamento, pois fizera compra nas imediações. Significava que teria que ir de moto, tendo o vento como companhia. Tremi. De frio. O vento olhou-me da janela e sorriu, sarcástico. Não perderia a oportunidade de congelar meus ossos. Pensei em desistir, dizer que era melhor deixar para outra vez. Outro dia jantarei aí, não quero sair de casa agora à noite. Sabe, a moto, a rodovia, o vento, o movimento.
Outro dia, quando? Se não queremos sair ou receber alguma coisa, dizemos: fica proutro dia, e, quase sempre, esse "outro dia" não chega. É um dia fictício, o mesmo que dizer: não, obrigado, não quero, nem agora, nem depois. Mas, no meu caso, o outro dia poderia ser na semana seguinte, já que toda semana jantamos juntos, uma, duas vezes.
Fraquejava, quando a esposa ligou e disse que me esperava, que deveria me agasalhar bem, pôr duas calças e cachecol. Recobrei o ânimo e disse que logo chegaria. Não poderia deixá-la recomendar daquela forma e, depois, simplesmente dizer que não iria. Não seria justo com ela, com todos que me esperavam. Saí, sem usar o que achei ser um exagero: duas calças, cachecol. Na verdade, não estava frio, apenas ventava. Teorizei mentalmente que eram duas coisas diferentes. Se apenas ventava, frio não passaria com a concentração no trânsito, agitação das ruas, paradas em inúmeros semáforos. O vento não me alcançaria. Saí, confiante, achando que burlara o vento. Estava tudo calmo, silencioso.
Adiante, um cão uivava baixo, sem voz, mais pela necessidade de uivar, que de chamar seus companheiros, que, àquela altura, estavam recolhidos, dormindo após a refeição de ração. O cão era singular, lembrou-me Médor, o cão do romance "A Jangada de Pedra", de José Saramago. O cão uivava tristemente, como se compusesse uma elegia. Magro, pêlo ralo, raquítico, não devia ter casa, por isso lamentava em seu canto, numa tentativa de exaltar os feitos das alcatéias do passado, de cuja linhagem nada se via nele.
Prossegui, mas tive vontade de parar e falar com o cão. Talvez falasse. Ouviria sua história, cão perdido que era, sua degradação. Mas não parei, fui adiante, me esperavam. Além do mais, não poderia levá-lo para casa, já tenho um que, às vezes, dá vontade de não ter.
Numa esquina, o vento me emboscou, não tive saída, fui atacado. Acelerei e, em questão de minutos, cheguei. O vento, ágil como um puro sangue árabe, esteve ao meu lado, me aporrinhando, como era de se esperar. Antes de subir ao apartamento, ofegante pelo esforço físico - o vento retirara meu fôlego -, percebi que há alguns metros, o cão que uivava estava parado, silencioso, cubista, olhar lânguido em minha direção. Como? Não poderia ter corrido quilômetros. Não teria condições e força, e, mesmo que tivesse, não seria possível. O vento, antes de me deixar em paz, disse para não subestimar nada, nem ninguém. Pensei em ao menos alimentar o cão, é claro que estava com sede, mas, entre o instante de tocar o interfone e olhar novamente à rua, o animal sumira. Estranhei.
Subi. Não disse nada a ninguém. Minha esposa, sorridente, veio até mim e me deu um par de luvas de presente. Fiquei feliz. Como é bom ganhar algo que se tem necessidade, água fresca no deserto quente.
As luvas são as meias das mãos. As luvas são os agasalhos das mãos. As luvas são a segunda pele das mãos.
Jantamos, fomos embora e não vi mais o cão. A partir daquele dia, ouço minha esposa quando diz que está frio e que devo usar agasalho reforçado, e não subestimei mais nada, nem ninguém. E fiz amizade com o vento. Quando estou de moto, ele vai de carona.
De vez em quando, ouço um uivo distante, como se fosse de lobo. Um uivo colorido, plástico, um uivo com os toques de um pintura de Basquiat. O chamado rouco da imaginação.

(Arte: "Untilled, 1981", de Jean-Michel Basquiat)

(Elson Teixeira Cardoso)

Um comentário:

Diana Menasché disse...

"E fiz amizade com o vento. Quando estou de moto, ele vai de carona."

Que bacana!
Achei essa imagem muito manera!
Assim como:
"Um uivo colorido, plástico, um uivo com os toques de um pintura de Basquiat. O chamado rouco da imaginação."
Boa sorte em tudo!
Di